Erick Rodrigues
Na manhã seguinte a uma chuva torrencial, uma mulher rica faz, ao telefone, um elogio à beleza do céu azul e sem poluição, condição que ela associa à tempestade que caiu no dia anterior. Ouvindo a conversa, está o motorista, que tem uma visão bem diferente daquele pé d´água. A chuva castigou o bairro pobre onde ele mora, diversas casas ficaram alagadas, inclusive a dele, que fica abaixo do nível da rua. Muitos perderam o pouco que tinham e precisaram de doações de roupas para terem o que vestir. Do alto de uma vida de privilégios, a patroa nem pensa que alguém no mundo pode ter sofrido com aquela quantidade de água que caiu do céu, mesmo que uma dessas pessoas esteja tão perto dela.
Esse é apenas um dos momentos em que o filme "Parasita", do diretor sul-coreano Bong Joon-ho, escancara o abismo da desigualdade social, que distancia ricos e pobres. O longa, que mescla o absurdo da sátira com a crueza da realidade, surpreende e incomoda o espectador, que fica hipnotizado com aquela construção narrativa.
"Parasita" não é o tipo de filme que convém ter muitas informações antes de ver, mas dá para dizer que a história se estabelece em duas realidades, que convivem em um mesmo mundo. Tudo começa quando um jovem (Woo-sik Choi) aproveita a indicação de um amigo para atuar como tutor de uma garota rica (Ji-so Jung). Enxergando certa ingenuidade na família da jovem, ele decide tentar ajeitar a vida dos pais (Kang-ho Song e Hye-jin Jang) e da irmã (So-dam Park), todos desempregados.
O roteiro, também sob responsabilidade de Bong Joon-ho, tem três atos bem definidos. No primeiro, a família pobre, os Kim, se deslumbra com as vantagens da vida dos ricos, os Park, e decide tirar uma casquinha para poder pertencer àquele universo que parece inalcançável. Para isso, a narrativa tem um tom satírico, conduzida quase que como uma comédia.
"Parasita" surpreende e dá uma guinada no segundo ato, depois que os Kim conseguem passar um tempo na casa dos Park, que saem para uma viagem. A história ganha mais densidade e cria uma situação de tensão que serve para que a família pobre descubra os segredos guardados na mansão, assim como algumas opiniões dos Park sobre eles.
No terceiro e derradeiro ato do longa, a "panela de pressão" alimentada pelas diferenças dos estilos de vida das famílias explode, provocando uma colisão entre esses mundos. O desfecho tem um tom mais trágico, indicando, talvez, que não há outro destino diante do choque entre duas realidades tão diferentes assim.
Com essa mescla de estilos narrativos e as surpresas do roteiro, o filme de Bong Joon-ho cria uma obra importante para a reflexão sobre a desigualdade social, debate oportuno não só ao país de origem do longa, mas também a outros, como o Brasil, onde esse problema é muito evidente. Sem apelar a sutilezas, a história usa os diálogos bem escritos e as situações absurdas para marcar bem os estilos de vida das famílias, assim como o choque entre os mundos.
De forma muito inteligente, a direção de "Parasita" faz o espectador pensar em como a desigualdade pode ser evidente no dia a dia, por exemplo, na geografia das cidades. Na história, a casa dos Park fica em uma área alta e bem estruturada, localização que serve para dar a impressão que a família vive acastelada, em uma "bolha" que a distancia da realidade dos mais pobres. Enquanto isso, os Kim moram quase que em um porão e enfrentam uma implacável inundação, causada pelas condições frágeis da região em que eles vivem.
Bong Joon-ho também cria um jogo interessante para definir as personalidades das famílias. Inicialmente, os Park são apresentados como ricos ingênuos e bem intencionados, enquanto os Kim parecem oportunistas e injustos. As revelações da história, no entanto, mostram outras facetas dos núcleos familiares. Afinal, quem parasita quem?
Vencedor da Palma de Ouro, do Globo de Ouro e com seis indicações ao Oscar 2020, "Parasita" é uma obra surpreendente e incômoda. Usando diferentes estilos de narrativa e muita inteligência, o filme expõe as injustiças da desigualdade social e perturba o espectador ao retratar como podemos ser indiferentes a realidades distintas. É uma experiência cinematográfica e, porque não dizer, de vida muito necessária.
PARASITA
COTAÇÃO: ★★★★★ (excelente)