Monica Bérgamo, para Folhapress
Em entrevista exclusiva concedida à Folha de S.Paulo e ao jornal El País nesta sexta (26), o ex-presidente Lula atribuiu a morte de sua mulher, Marisa Letícia, ocorrida em fevereiro de 2017, aos impactos psicológicos do que ele diz ser uma perseguição contra ele e sua família.
“A dona Marisa perdeu motivação de vida, não saía mais de casa, não queria mais conversar nada. O AVC dela foi por isso.”
O petista, no entanto, descarta alimentar tal sentimento. “Agora, não pense que por causa disso eu vou ficar com meu coração cheio de ódio. Aqui tem muito lugar para amor. O ódio eu vou colocando num cantinho bem escondido.”
Após uma batalha judicial na qual a entrevista chegou a ser censurada pelo STF (Supremo Tribunal Federal), decisão revista na semana passada pelo presidente da corte, Dias Toffoli, o petista recebeu os dois veículos, em uma sala preparada pela Polícia Federal na sede do órgão em Curitiba, onde está preso desde abril do ano passado.
Lula questiona ainda a capacidade política de o governo Jair Bolsonaro (PSL) sobreviver.
“Ou ele constrói um partido político sólido ou do jeito que está também não perdura muito. Porque ali você tem uma quantidade difusa de interesses. Não sei como você é deputado 27 anos e diz que não gosta de política.”
Leia, abaixo, novos trechos da entrevista de Lula:
Como o senhor recebeu a notícia da morte de Alan Garcia [ex-presidente do Peru, que se matou quando ia ser preso por denúncias de corrupção]?
Lula – Eu nunca consegui entender a morte do Getúlio Vargas. O último filme que assisti do Getúlio Vargas foi esse com o Tony Ramos. É um bom filme.
Eu lembro que, em 2005, numa plenária com empresários no Palácio da Alvorada [quando era presidente], eu falei:
“Eu quero que vocês saibam como eu sou. Não vou me matar porque eu não tenho vocação de Getúlio, não vou correr porque não tenho vocação de pedir asilo político. Se alguém quiser me pegar nesse país, vai me pegar na rua”.
E comecei a ir pra rua. E por isso que ganhei em 2006 [quando foi reeleito presidente] e orgulhosamente terminei o meu mandato com 87% de bom e ótimo, 10% de regular, e 3% de péssimo, que deve ter sido lá no condomínio do Bolsonaro e na sede do PSDB.
E o Alan Garcia?
Lula – Ele teve uma reação psicológica que muita gente tem, como o reitor da UFSC [que se suicidou].
Não é todo mundo que aguenta. A Marisa [mulher de Lula] morreu por conta disso. Quem está falando é um homem de 73 anos de idade, perto de fazer 74 anos. A dona Marisa morreu por conta do que fizeram com ela e com os filhos dela.
A dona Marisa perdeu motivação de vida, não saia mais de casa, não queria mais conversar nada. O AVC dela foi por isso. Agora, não pense que por causa disso eu vou ficar com meu coração cheio de ódio. Aqui tem muito lugar para amor. O ódio eu vou colocando num cantinho bem escondido.
E o Alan Garcia não deve ter suportado. Eu não sei, não leio imprensa peruana, não sei qual era a acusação que se fazia contra ele. Mas o Alan Garcia era um homem que tinha saído muito mal do governo. O Peru tem uma coisa engraçada, é um país que cresce a 5% ao ano e todos os presidentes saem com 10%, 5% de aprovação.
É porque eles exportam tudo para os Estados Unidos. Eles crescem mas não têm distribuição de renda. O país cresce 5% e a miséria cresce a 10%. A miséria sempre vai na frente do crescimento.
Eu sinceramente não sei como ele se matou. Tem que ter muita decisão [para não se matar]. Eu sei o que eu passei. Eu sei o que passei. Você não tem noção do que é passar seis meses esperando todo santo dia que a Polícia chegue na tua casa? Todo santo dia. Não é um dia, não, são seis meses.
E, de repente, você vê a polícia chegar na tua casa, com uma desfaçatez, todo mundo [os policiais] com máquina fotográfica pendurada no peito para tirar fotografia.
Deveriam ter mostrado a quantidade de dólares que acharam, a quantidade de joias que acharam da dona Mariza.
Deveriam ter tirado foto e colocado na TV Globo. Enfiaram o rabo no meio das pernas porque não encontraram nada. E a imprensa não fala “não encontraram nada na casa do Lula”.
É duro. Não queira que isso aconteça com você. Eu conheço casos de pessoas [presas] que estavam em cadeira de rodas, pediam para ir no banheiro e diziam: “Se você não falar o nome do Lula, você não vai no banheiro”. Como a história não é contada, essas coisas vão acontecendo. Então eu tenho muita motivação para estar vivo. Estar vivo e não fazer nenhuma loucura.
Foi a forma que eu encontrei de ajudar esse país a se reencontrar com a democracia, com o amor, com a paz. Esse povo tem o direito de ser feliz, de viver bem. Então é para isso que eu existo, meu caro. E para isso eu vou brigar até os últimos dias da minha vida.
Me diga o seguinte: Lula, você está livre, vai morar nas Bahamas, tem um lugar para você lá, vai ter água de coco todo dia de manhã. Mas o compromisso é não fazer política. Eu vou dizer o seguinte: “Eu vou ficar aqui, sem água de coco, sem Bahamas. Vou ficar na esperança de que eu vou andar por esse país levantando a cabeça do meu povo para a gente voltar a conquistar direitos”.
O povo tem que tomar café de manhã, almoçar e jantar todo dia, e se puder comer uma bolachinha às três horas da tarde com café com leite, e se puder fazer um lanchinho dez horas da noite, antes de dormir.
Quero que o povo vá ao teatro, ao cinema. A coisa mais fantástica é um pobre pegar um avião, não sabe nem como entra no banheiro, mas pega um avião e vai para a sua terra. É isso que eu quero é e por isso que vou brigar
E sei que tem muita gente que não gosta de mim, e é por isso que eu vivo, é por isso que eu tô de cabeça erguida. Não pense que eu estou aqui orgulhosamente, não. Eu estou aqui com orgulho de defender o povo. Mas gostaria de estar fora com meus netos e meus filhos.
O senhor falou que o PSDB acabou. Quem vê agora como principal adversário? O Bolsonaro? O Moro? Os militares, que passaram a ter protagonismo?
Lula – A vida inteira vocês gozaram de mim porque ele falava “menas laranja”. O Moro falar “conje” [em vez de cônjuge] é uma vergonha. Sinceramente é uma vergonha. É o mínimo que ele deveria saber porque está escrito no Código Penal, há vários artigos que falam de cônjuge.
O Moro não sobrevive na política. E o Bolsonaro, ou ele constrói um partido político sólido ou do jeito que está também não perdura muito. Porque ali você tem uma quantidade difusa de interesses. Não sei como você é deputado 27 anos e diz que não gosta de política [referindo-se à carreira de Bolsonaro]. Como você faz um filho vereador, outro deputado federal, outro senador, e você não gosta de política.
Então, ele vai ter que ter muita capacidade de articulação, muita vontade, vai ter que gostar muito de política para poder dar certo. Porque a chance de ele dar certo é o Brasil dar certo. O povo tem paciência, mas não tem toda a paciência do mundo.
Pode dar certo?
Lula – Não sei. Do jeito que está fazendo não pode dar, querida. Não tem condições de dar. Você [o governo] diminuiu a renda per capita da sociedade, você diminuiu o salário mínimo, você diminuiu a possibilidade de oferta de emprego e você acha que tudo vai ser resolvido com R$ 1 trilhão para a Previdência, para o sistema financeiro? Vai dar certo onde?
Sabe o que dá certo? Dá certo se fizer como nós fizemos: legalizamos e formalizamos 6 milhões de microempreendedores individuais. Sabe porque a Previdência era superavitária no meu governo? Porque teve 20 milhões de pessoas trabalhando com carteira profissional assinada. Seis milhões de microempreendedores individuais se formalizaram. O Brasil quadruplicou as exportações.
Você está lembrada que eu criei uma coisa chamada primeiro emprego. Foi uma farsa aquilo, uma loucura. Eu achava que fazendo uma lei, criando o primeiro emprego, e dizendo para os empresários que eu ia pagar R$ 200, ia gerar emprego.
Nenhum empresário gera emprego porque eu estou dando R$ 200 para ele. O que vai gerar emprego são os puxadinhos da Caixa Econômica Federal. Fiz financiamento para construir um puxadinho. Surgiram no mesmo ano dez novas fábricas de cimento no Brasil.
Quando você faz a economia, o povo come um pãozinho a mais, toma um cafezinho a mais, uma cervejinha a mais, ganha um real a mais, compra um chinelo a mais.
Aí , você começa a gerar emprego no país. Agora você, do jeito que eles tão fazendo, inclusive brigando com os nossos maiores parceiros comerciais, desprezando a América do Sul… o nosso comércio com a Argentina é maior do que com todos os países da Europa.
Como vai desprezar o nosso comércio com a Argentina o Mercosul?
Esse cara [Bolsonaro] não entende de nada. Também, com o ministro que ele tem das relações exteriores [Ernesto Araújo], aquilo foi encomendado.
Saudades do Silverinha [Azeredo da Silveira, ex-chanceler] nos tempos do [ex-ditador Ernesto] Geisel, que teve coragem de reconhecer Angola. Esse cidadão que está aí [Araújo], sinceramente, como o Celso Amorim [ex-chanceler de Lula] deixou um cara desse na carreira do Itamaraty?