Carolina Linhares e Bruno Lee, FOLHAPRESS
Principal suspeita contra o governo Jair Bolsonaro até aqui, o caso Covaxin, que se tornou centro da CPI da Covid no Senado e inflama protestos e pedidos de impeachment, expôs uma série de contradições no discurso bolsonarista sobre vacinas e combate à corrupção.
Combate à corrupção
Apesar do discurso contra a corrupção, que rendeu a Bolsonaro o voto, em 2018, de apoiadores da Lava Jato e atraiu para seu governo o ex-juiz Sergio Moro, não há indícios de que o presidente tenha acionado órgãos de controle diante das suspeitas no contrato de compra da Covaxin que o deputado Luis Miranda (DEM-DF) diz ter levado ao mandatário, em março.
Como mostrou a coluna Painel, da Folha de S.Paulo, a Polícia Federal não encontrou registro de nenhum inquérito aberto sobre a compra da vacina, o que levantou acusação de que Bolsonaro tenha prevaricado.
Senadores governistas da CPI da Covid afirmaram que Bolsonaro pediu que o então ministro da Saúde Eduardo Pazuello verificasse as denúncias envolvendo a compra da vacina indiana assim que teve contato com os indícios.
A conivência com as suspeitas de corrupção destoa do discurso anterior de Bolsonaro, de ameaças a ministros que fossem pegos cometendo irregularidades.
"Se aparecer [corrupção], boto no pau de arara o ministro. Se ele tiver responsabilidade, obviamente. Porque, às vezes, lá na ponta da linha, está um assessor fazendo besteira sem a gente saber. Não é isso? É obrigação nossa, é dever", disse Bolsonaro, em dezembro de 2019.
Em outubro de 2020, a ameaça foi de "voadora no pescoço". "Se acontecer alguma coisa, a gente bota para correr, dá uma voadora no pescoço dele. Mas não acredito que haja no meu governo", disse.
Na prática, porém, Bolsonaro mantém o deputado Ricardo Barros (PP-PR) como o líder do governo na Câmara.
Apesar do discurso de rigor contra suspeitas de corrupção, Bolsonaro afirma que, no caso da Covaxin, não houve irregularidades já que a compra não chegou a ser realizada.
Bolsonaro ignora que o valor da compra já foi empenhado (reservado) e que o crime de corrupção fala não apenas em receber vantagem indevida, mas em solicitá-la ou "aceitar promessa de tal vantagem".
"Inventaram a corrupção virtual, né? Não recebemos uma dose, não pagamos um centavo", disse Bolsonaro.
Mandar no governo
Depois de uma série de declarações em que reforça sua autoridade e diz fazer o que quer no governo, agora, após o escândalo da compra da Covaxin, Bolsonaro afirma não ter conhecimento e controle sobre seus ministérios.
A fala, além de ser contraditória em relação a manifestações anteriores, também se opõe à versão do deputado Luis Miranda, segundo a qual o presidente foi avisado sobre as suspeitas da Covaxin e, uma vez a par da questão, relacionou Barros ao episódio.
"Quem manda sou eu, vou deixar bem claro. Eu dou liberdade para os ministros todos, mas quem manda sou eu. [...] Quando vão nomear alguém, falam comigo. Eu tenho poder de veto, ou vou ser um presidente banana agora? Cada um faz o que bem entende e tudo bem?", disse Bolsonaro, em agosto de 2019, sobre trocas na Polícia Federal.
Aversão ao centrão
O caso Covaxin levantou suspeitas sobre o controle do líder do governo na Câmara, Ricardo Barros, sobre o Ministério da Saúde. Por meio de Barros, que é membro do chamado centrão, o fisiologismo e a troca de favores, que Bolsonaro dizia combater, foram parar no centro do escândalo.
Governar sem "toma lá, dá cá" e sem a "velha política" era uma promessa de campanha de Bolsonaro, como ele afirmou em 2017.
No ano passado, sob ameaças de impeachment, porém, o presidente iniciou negociações com o centrão. O repasse de cargos envolveu secretarias estratégicas em ministérios e foi do Porto de Santos à Funasa (Fundação Nacional de Saúde).
No dia 6 de maio, Bolsonaro nomeou a mulher de Barros, Cida Borghetti (PP), para o cargo de conselheira de administração de Itaipu.
Aprovação da Anvisa para compra de vacinas
Em seus discursos que alimentavam suspeitas em relação às vacinas contra a Covid e defendiam o tratamento ineficaz com cloroquina, Bolsonaro usou como argumento a falta do aval da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) para desacreditar os imunizantes.
"Pessoal disse que eu era contra a vacina. Eu era contra sem passar pela Anvisa. Passou pela Anvisa, eu não tenho mais que discutir, tenho que distribuir", disse em janeiro.
O Ministério da Saúde, porém, anunciou a compra da Covaxin em fevereiro e, no mês seguinte, a Anvisa não deu aval ao imunizante.
Luis Ricardo, irmão de Luis Miranda e servidor do Ministério da Saúde, disse ao Ministério Público Federal que recebeu pressão "atípica" para agilizar a compra da Covaxin. O servidor afirmou ainda que seus superiores pediram para que ele obtivesse a "exceção da exceção" junto à Anvisa para a liberação da imunização.
Em 25 de fevereiro de 2021, foi assinado o contrato entre o Ministério da Saúde e a Precisa para a aquisição de 20 milhões de doses. Em março, a Anvisa negou um pedido de importação da Covaxin feito pelo Ministério da Saúde. Entre os motivos estava a falta de dados mínimos exigidos para análise e a falta de certificado de boas práticas de fabricação para a Bharat Biotech, empresa responsável pelo imunizante, após inspeção em fábrica na Índia.
Em 4 de junho, porém, a Anvisa aprova pedido de importação de doses, mas com restrições, diante da necessidade de estudos extras de efetividade. Em 9 de junho, a Anvisa concedeu o certificado de boas práticas.
O governo Bolsonaro assinou o contrato a toque de caixa, sem atender a tempo a um conjunto de dez recomendações feitas pela consultoria jurídica do Ministério da Saúde, formada por integrantes da AGU (Advocacia-Geral da União). O processo para compra da Covaxin levou 97 dias, contra 330 dias da Pfizer.
Preço das vacinas
Em novembro de 2020, em meio a embate com João Doria (PSDB) sobre a compra da Coronavac, Bolsonaro afirmou que iria adquirir as vacinas, mas não no preço "que um caboclo aí quer".
"Mas não é comprar no preço que um caboclo aí quer. Está muito preocupado um caboclo aí que essa vacina seja comprada a toque de caixa. Nós vamos querer uma planilha de custo", completou.
A dose da Coronavac custa US$ 10,80, enquanto a da Covaxin custa US$ 15. A Precisa Medicamentos afirmou que o preço oferecido ao governo brasileiro segue tabela mundial e é o mesmo praticado com outros 13 países.
Como mostrou a Folha de S.Paulo, o governo Bolsonaro recusou vacinas da Pfizer no ano passado à metade do preço pago por Estados Unidos, Reino Unido e União Europeia.
Aversão a "vacina chinesa"
Na esteira do caso Covaxin, a CPI da Covid levantou suspeitas de corrupção e favorecimento em outro contrato, o da vacina chinesa Convidecia. A empresa Belcher Farmacêutica, com sede em Maringá (PR), atuou como representante no Brasil do laboratório CanSino Biologics no Brasil, responsável pelo imunizante.
Senadores querem investigar se houve participação de Ricardo Barros, que foi prefeito de Maringá. Um dos sócios da Belcher é filho de um empresário próximo de Barros.
Em 4 de junho, o Ministério da Saúde assinou uma carta de intenção de compra da vacina da CanSino, 60 milhões de doses do imunizante a um custo de US$ 17 cada uma.
Em nota, o ministério afirmou que a CanSino não é mais representada pela farmacêutica Belcher e que o acordo não foi fechado.
A negociação contradiz o discurso bolsonarista que tenta desacreditar vacinas da China. Os ataques em relação à origem do imunizante também foram feitos no caso da Coronavac, que ao final foi comprada pelo ministério.
As declarações de Bolsonaro contra a China geraram mal-estar com a diplomacia do país e podem ter afetado a liberação de insumos para a produção de vacinas.
"Da China nós não comparemos, é decisão minha. Eu não acredito que ela [vacina] transmita segurança suficiente para a população pela sua origem", disse o presidente em outubro de 2020.