Ana Bottallo, Folhapress
Desde o início da pandemia, médicos e outros pesquisadores têm debatido qual seria o papel de crianças pequenas, de até três anos de idade, na cadeia de transmissão do coronavírus. Diversos estudos realizados no último ano indicaram que elas, de modo geral, adoecem menos e têm menor capacidade de transmitir o Sars-CoV-2.
Apesar do risco geral baixo de ficarem gravemente doentes ou morrerem por Covid-19, as crianças pequenas têm dificuldades para manter as medidas protetoras -como uso correto de máscaras por todo o tempo, distanciamento físico e higiene das mãos-, o que levanta questões sobre a segurança da volta presencial das aulas.
O consenso científico era de que esse risco menor de adoecer com gravidade e essa baixa incidência de casos associados à reabertura das escolas poderiam facilitar o retorno às aulas, minimizando os efeitos que o extenso período em isolamento causou nos pequenos.
Agora, um novo estudo publicado nesta segunda (16) na revista científica Jama (Journal of the American Medical Association) indica que as crianças de zero a três anos apresentam uma maior chance de serem a principal fonte de transmissão do Sars-CoV-2 dentro de casa -mais até do que os adolescentes de 14 a 17 anos, idade que é considerada a mais acometida pela doença entre quem tem menos de 18 anos.
O estudo populacional avaliou quase 90 mil domicílios, dos quais 6.280 tiveram como foco primário da doença uma criança de 0 a 17 anos. Em quase um terço (27%, ou 1.717) deste total, um membro da família foi contaminado de maneira secundária dentro de casa por uma criança que tinha o vírus.
Um caso era considerado como secundário se o início dos sintomas no segundo paciente ocorresse em um intervalo de 1 a 14 dias depois do aparecimento dos sintomas no primeiro paciente ou se ele tivesse o diagnóstico confirmado por um teste.
Para analisar como as crianças de diferentes idades podem representar maior risco de contágio dos parentes, os pesquisadores dividiram os dados em quatro grupos: de 0 a 3 anos, 4 a 8, 9 a 13 e 14 a 17.
Os bebês de 0 a 3 anos representaram 12% dos casos primários, e a proporção cresceu conforme o aumento da idade, sendo 20% na faixa etária de 4 a 8 anos, 30% dos casos de 9 a 13 anos e 38% para adolescentes de 14 a 17 anos.
No entanto, a chance de uma criança de até três anos transmitir para seus familiares ou cuidadores (casos secundários) é maior do que naquelas mais velhas, de até 17 anos. Em números, os valores encontrados indicam a chamada razão de chance (odds ratio, em inglês) do primeiro grupo transmitir o coronavírus para sua família de 1,43, em comparação a 1 (valor de referência, sem risco aumentado) no grupo de adolescentes de 14 a 17 anos.
Ou seja, a chance de crianças de 0 a 3 anos transmitirem a doença para familiares dentro de casa é quase 1,5 vez maior que a de adolescentes de 14 a 17 anos.
Curiosamente, os bebês e crianças pequenas transmitiram mais também para indivíduos mais jovens, de 0 até 20 anos, enquanto os adolescentes foram foco de contágio principalmente para adultos de 30 a 50 anos.
Segundo os autores, os dados encontrados não mudaram independentemente de as crianças serem ou não sintomáticas, da reabertura ou não de escolas e creches ou da ocorrência de surtos nos ambientes escolares. A pesquisa foi conduzida entre 1˚ de junho e 31 de dezembro de 2020 e usou dados do estado de Ontário, no Canadá, onde a reabertura das creches e escolas ocorreram, respectivamente, na segunda quinzena de junho e a partir do meio de setembro.
Para o pediatra e diretor da SBIm (Sociedade Brasileira de Imunizações) Renato Kfouri, as crianças continuam sendo as menores transmissoras no contexto social. Mesmo assim, ele aponta que o novo estudo pode representar representar o primeiro achado contrário ao que as pesquisas até agora demonstraram -que no grupo menor de 18 anos, os adolescentes seriam o principal foco de contágio, se assemelhando à transmissão de adultos.
"No total das crianças que transmitem, os mais novos podem ter papel mais importante na transmissão para outras pessoas, mas ainda é desproporcional a taxa de transmissão das crianças em relação aos adultos", diz.
Pesquisas tanto internacionais quanto nacionais feitas no último ano apontavam que a carga viral aumenta conforme a idade, mas a medida sobre quanto de partículas virais uma criança pequena pode eliminar ainda é desconhecida.
Segundo especialistas e de acordo com as evidências até agora, uma carga viral maior em crianças não representava maior chance de contágio nesse grupo, especialmente nos mais novos. O novo estudo pode abrir um caminho para a investigação de qual o papel das crianças na transmissão intradomiciliar, diz Kfouri.
"Em teoria, a excreção [eliminação] viral das crianças menores tende a ser menor, assim como carga viral, presença de sintomas, elas tendem a tossir menos, espirrar menos. Então esse estudo pode representar uma mudança total no paradigma que temos até agora, e é preciso investigar isso com atenção", afirma.
Apesar do período do estudo ter sido no último ano, Kfouri afirma que a tendência em 2021 e nos próximos meses até 2022 é que os casos de Covid-19 sejam proporcionalmente maiores na população mais jovem, incluindo as crianças, uma vez que os adultos já estão em grande parte vacinados ou parcialmente imunizados.
"Se antes tínhamos cem casos de Covid dos quais 2% eram em crianças, agora temos 10 a 15% em crianças, porque a tendência é diminuir nas faixas etárias já vacinadas", explica.
Um relatório publicado pela Associação Pediátrica Americana, com dados até o dia 5 de agosto, indicou que quase 4,3 milhões de crianças tiveram Covid-19 nos Estados Unidos desde o início da pandemia, com um acréscimo de 94 mil casos na semana anterior -o que representa um aumento de 4% em comparação com o período anterior. A estimativa é de 15% a 20% dos casos acumulados no país sejam em crianças.