29 de Abril de 2024
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"Coringa" discute sociedade afetada por processos históricos de violência e abandono social

Postado em: 21/10/2019

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Erick Rodrigues

Se você não é alienado ou tem o mínimo de sensibilidade, certamente já parou para questionar os rumos do mundo em que vivemos, especialmente nos últimos tempos. Seja por razões políticas, econômicas ou sociais, esse tipo de reflexão surge das ruas, das páginas dos jornais e das estatísticas divulgadas por órgãos oficiais. "Sou eu ou o mundo está ficando mais louco?". Não é a toa que essa frase está inserida em "Coringa", filme perturbador do diretor Todd Phillips sobre o clássico personagem da DC Comics, mas que carrega poucas ligações com o universo cinematográfico dos super-heróis.

Descolado das demais produções do gênero, "Coringa" pode parecer, em um primeiro momento, ser apenas uma história sobre a origem do maior rival do Batman, mas não se engane. O roteiro vai mais fundo e, mesmo aberto a múltiplas interpretações, quer falar sobre uma sociedade perversa e doente, muito mais do que o protagonista, alimentada por um histórico processo de violência, intolerância e exclusão.

O roteiro apresenta o espectador à rotina de Arthur Fleck (Joaquin Phoenix), um comediante em busca de um lugar no mundo do stand-up comedy. Considerado por muitos como uma figura "esquisita", ele trabalha em uma empresa que fornece palhaços para eventos e hospitais, mas constantemente sofre agressões e é ridicularizado por pessoas que se acham "superiores" ou "normais".

Arthur tem problemas psicológicos e, por isso, se submete a encontros recorrentes com uma profissional da área, o que garante a ele acesso aos medicamentos que precisa. O protagonista ainda é responsável por cuidar da mãe (Frances Conroy), que lida com os próprios distúrbios mentais.

Nessa rotina, o personagem costuma escrever pensamentos e piadas em um caderno, material para ser usados em apresentações e, quem sabe, no programa do apresentador Murray Franklin (Robert De Niro), transmitido para toda Gotham City. Vítima de um distúrbio que o faz soltar risadas incontroláveis e sem contexto, Arthur enfrenta uma série de situações que, aos poucos, transformam o palhaço em um criminoso e acabam insuflando uma população revoltada.

Lançado em um mundo de extremos e interpretações convenientes, "Coringa" tem provocando comentários dos mais variados, que vão de acusações sobre o viés político da história a preocupações de que o longa poderia incentivar espectadores a cometer desatinos semelhantes aos do personagem central. Particularmente, encaro que o filme propõe uma reflexão sobre uma escalada perversa de uma sociedade extremamente tensionada por violência, intolerância, descaso político e abandono social.

Lidando desde sempre com transtornos mentais, Arthur Fleck não é aceito como "normal" e, por isso, é colocado à margem da sociedade. Ele sofre agressões físicas constantes e é verbalmente humilhado por colegas de trabalho e completos desconhecidos. Também é destratado pelo Estado, que não fornece o tratamento necessário aos problemas psicológicos dele. Dia após dia, o personagem senta em frente a profissionais pouco comprometidos, que repetem perguntas à exaustão e de forma burocrática, sem verdadeiramente se preocupar com o paciente. Do nada, o governo corta verbas e interrompe essa escassa assistência, deixando o doente ainda mais vulnerável.

Muitos dizem que a explicação para a transformação de Arthur Fleck no criminoso Coringa está nos problemas mentais, na chamada "loucura" do personagem. Não vejo assim. Os distúrbios psicológicos do protagonista se manifestam em devaneios do dia a dia, na risada incontrolável e até nos momentos em que o personagem dança pelas ruas, características essas provocadoras da reação intolerante e violenta de uma sociedade que cobra normalidade e se incomoda com a diferença. Não dá para escapar dos clichês: violência gera violência, ódio gera ódio.

"Coringa" ainda estabelece uma discussão interessante sobre a forma que o público se relaciona com o personagem diante desse cenário. O passado e a vida de Fleck são capazes de justificar ou perdoar as atitudes dele? Podemos sentir empatia pelos vilões? Acredito que o filme quer mostrar que, mesmo acostumados com discursos localizados em extremos, precisamos considerar a complexidade dos problemas, combatendo a raiz e não apenas condenando os frutos. Não é uma questão de justificar, mas sim de analisar com profundidade o ambiente que alimenta a perpetuação desses comportamentos.

O roteiro também guarda debates interessantes sobre a reação da sociedade de Gotham aos crimes do Coringa. Assassinatos cometidos pelo personagem geram apoios e protestos da população contra a elite da cidade, associada ao poder político e a um descaso com os menos favorecidos. Fleck não justifica as próprias ações por nenhuma ideologia, mas vê essas atitudes convenientemente transformadas em discursos supostamente engajados, mesmo que alguns só queiram dar vazão a preconceitos, argumentos vazios e mais ódio. Também há, no entanto, aqueles que estão fartos de tantas carências e alçam o protagonista ao posto de "herói". O ignorado encontra, assim, uma plateia.

Sobre as preocupações e acusações de que o filme poderia influenciar pessoas a terem atitudes violentas na vida real, confesso que acho bobagem. A violência está aí, com ou sem a produção, influenciada mais por um processo histórico e reações extremadas do que pela ficção.

É preciso destacar o desempenho espetacular de Joaquin Phoenix, em mais um trabalho de entrega impressionante. Seja nos trejeitos, no olhar ou na forma de dizer o texto, o ator incorpora uma personalidade doentia e frágil, alvo da violência e da exclusão da sociedade. Outra atuação marcante é a de Robert De Niro, em um papel muito conectado com o filme "O Rei da Comédia", protagonizado por ele e dirigido por Martin Scorsese, em década de 80.

"Coringa" é um filme complexo e aberto a várias interpretações, inclusive dos que acreditam que ele é pretensioso e equivocado. Mais do que uma oportunidade de apresentar uma abordagem diferente ao vilão do Batman, a produção quer propor uma discussão sobre a sociedade influenciada por um processo histórico de violência e abandono social, que produz ódio, injustiças e não poupa nem mesmo os psicologicamente mais frágeis. Uma sociedade doente, que prefere ignorar a raiz dos problemas, prega o extermínio dos frutos podres e ainda cobra um sorriso forçado no rosto.

 

CORINGA

COTAÇÃO: ★★★★ (ótimo)

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