Patrícia Campos Mello e Avener Prado, FOLHAPRESS
Sempre quando chega a hora das refeições dos pacientes, 11h30 e 17h30, o Hospital Geral de Roraima fica cheio de venezuelanos. Muitos pegam pulseirinhas de identificação que foram jogadas no lixo e se fingem de acompanhantes de pacientes, para poder comer.
Outros entram no pronto-socorro e dizem estar com muita dor de cabeça, para serem internados e ganharem um almoço. “A doença da maioria dos venezuelanos que chegam aqui é a fome”, diz Marcilene da Silva Moura, diretora do hospital.
O cotidiano dos venezuelanos que vivem em Roraima é feito de pequenas e grandes indignidades. Yosmal Sanchez, 38 anos, está preso à máquina de hemodiálise do hospital porque não tinha dinheiro -nem conseguia encontrar em Caracas- um simples remédio para pressão alta. O remédio que ele precisava custa R$ 7 ao mês no Brasil, isso quando não é distribuído de graça. Mas Yosmal deixou de tratar sua hipertensão quando perdeu o emprego na Venezuela. Ele trabalhava nas obras do metrô de Caracas, da Odebrecht, que foram paralisadas. Acabou com insuficiência renal.
Segundo a prefeitura de Boa Vista, 65% dos venezuelanos na cidade estão desempregados e 10% deles vivem em espaços públicos.
Roselis Triana, 35, é uma delas. Faz dois meses que dorme na calçada em frente à rodoviária com sua filha Kristal, 5, o marido Carlos, 36, e o primo Darwin, 30.
Usa o banheiro da rodoviária e paga R$ 5 no cibercafé para falar com os dois filhos que deixou em Caracas. “Nós, venezuelanos, éramos ricos e não sabíamos. Nunca imaginei que ia acabar dormindo na rua”, diz Roselis. O marido era motorista de lotação e o irmão, sapateiro. Perderam o emprego. Ela já pediu para ser transferida para um abrigo em Boa Vista, mas a resposta é sempre a mesma: não há vagas. Seu sonho é ser enviada para São Paulo.
Alexander Perez, 50, vendeu os pneus e a bateria de seu Fiat Palio 98 pelo equivalente a R$ 120 para pagar a viagem de sua cidade, El Tigre, até Pacaraima. Era dono de uma oficina mecânica na Venezuela. “Lá ninguém vai na oficina, quando o carro quebra, eles encostam.”
Ele agora bate de porta em porta em Boa Vista e se oferece para capinar, limpar ou consertar qualquer coisa. Ganha, com sorte, R$ 50 por dia -menos do que ganharia um brasileiro. Mas não reclama. “Capinando um dia eu ganho mais do que a minha esposa em um mês, dando aulas na universidade.”
Desde o fim de 2014, 2,2 milhões de venezuelanos deixaram o país, fugindo da crise política e humanitária. O Brasil recebeu 127 mil, mas mais da metade já deixou o país.
Frequentemente, eles são alvo de preconceito em Roraima. Em Boa Vista, por exemplo, a polícia está fazendo batidas para combater o aumento de roubos de bicicletas.
Os venezuelanos que estejam pedalando sem a nota fiscal têm sua bicicleta apreendida. “Mas quem é que sai na rua carregando nota fiscal da bicicleta?”, pergunta a prostituta venezuelana Mary, que teve sua bicicleta confiscada.
O venezuelano Raymundo Campos, de 22 anos, morreu na semana passada com uma facada na costela por causa de uma caixa de som portátil, na frente do quarto que dividia com a família. Um brasileiro tentou roubar o objeto e o esfaqueou. A família telefonou para o Samu, mas o atendente foi ríspido: “Não somos serviço de táxi para venezuelano”. Quando a ambulância chegou, uma hora depois, Ray estava morto. Sua mãe, Belkis Campos, 47, desesperou-se e foi com um grupo de venezuelanos até uma casa onde achava que estava escondido o assaltante.
O dono do lugar chamou a polícia e disse que havia prostitutas venezuelanas tentando entrar lá. Belkis foi presa, acusada de tentativa de roubo de um celular e levada, algemada, para a delegacia. Passou a noite na cela. Teria perdido o velório do filho, não fosse a ajuda de uma ONG. “Não somos todos maus, não somos todas prostitutas”, diz Belkis, que cata latinhas em Boa Vista. Seu filho Ray vendia panos de prato.
Belkis saiu de Caracas seis meses atrás, porque está com câncer no seio e não conseguia tratamento. “Esse sangue que caiu no solo não será desperdiçado, vai lavar cada um dos venezuelanos que continuam chegando aqui”, dizia o padre mexicano Elias Arroyo Roman, no velório onde alguns poucos venezuelanos se aglomeravam em torno do caixão.
Belkis faria um exame naquela semana, para depois ser operada -mas faltou à consulta médica porque estava enterrando o filho.