Erick Rodrigues
Todas as vidas são compostas por bons e maus momentos, mas, muitas vezes, são as situações ruins que deixam as marcas mais profundas. A aspereza e a velocidade do dia a dia; as frustrações; os medos; fatores externos, como violência e injustiça social; a solidão e o ódio, tudo isso parece corroer ainda mais as feridas das pessoas, que acabam se esquecendo da força e do valor de outros sentimentos como, por exemplo, do amor. A história de Fred Rogers, famoso apresentador de TV norte-americano, contada no filme "Um Lindo Dia na Vizinhança", é uma boa oportunidade para analisarmos como estamos encarando a vida e como isso reflete diretamente no mundo.
Pouco conhecida fora dos Estados Unidos, a figura de Fred Rogers sempre causou estranheza. Cogitando ir para um seminário, ele desistiu desse caminho para trabalhar na televisão, mas tinha um objetivo bem menos fútil que fama ou pura satisfação pessoal. Rogers encarava aquela forma de comunicação como uma possibilidade de contribuir com o desenvolvimento das crianças. Contrário a produtos de entretenimento que não fossem educativos ou estimulassem a violência, o apresentador queria usar um discurso simples e direto para lidar com os sentimentos dos pequenos. Assim nasceu o programa "A Vizinhança do Senhor Rogers".
Por anos, o apresentador entrou no cenário de uma casa, sentou em frente às câmeras e convidou o público infantil a embarcar para um universo de faz de conta. E, não pense que os temas das histórias ou lições ensinadas por ele eram apenas bobos ou fúteis. Rogers usava o espaço que tinha, contrariando regras de mercado, para discutir morte, divórcio, doenças, frustrações e, até mesmo, política. Para isso, usou o amor ao próximo, o respeito à inteligência das crianças, a habilidade de escutar as necessidades delas e um impressionante carisma.
O roteiro de "Um Lindo Dia na Vizinhança" começa introduzindo o espectador ao período em que Rogers, vivido por Tom Hanks, já uma personalidade famosa e, para muitos, difícil de ser compreendida. Essas dúvidas são representadas pelo jornalista Lloyd Vogel (Matthew Rhys), que encara a vida com muita amargura e ceticismo. O repórter é obrigado a escrever um perfil sobre o apresentador infantil e, apesar dos pedidos para encarar a tarefa com a mente aberta, só enxerga estranheza e falsidade naquela figura.
Na história, Vogel representa uma série de outras pessoas que julgaram as atitudes de Rogers. Muitos não acreditavam nos discursos do apresentador sobre o amor e a empatia que sentia pelos outros seres humanos. Pensavam que aquilo era um personagem forçado de TV, que ninguém poderia ser tão bondoso daquela forma. Outros julgavam que o comportamento de Rogers não era masculino, questionando a sexualidade dele.
Vamos parar por um instante e pensar em uma figura como essa nos dias atuais. Nesse mundo em que vivemos hoje, onde a hostilidade e a raiva parecem ganhar cada vez mais espaço, como reagimos a uma pessoa genuinamente boa, interessada no semelhante, que fala de forma mansa e não parece se guiar por egoísmo ou rancor? Imediatamente, pensamos que ela é boa demais para ser real, que é falsa, que deve ter muito a esconder. Se todas essas características forem somadas a uma profunda afinidade com crianças, com a visão da realidade de agora, podemos até pensar que ela tem interesses mais escusos.
A grande função de "Um Lindo Dia na Vizinhança" é nos fazer refletir sobre termos adquirido esse olhar descrente em relação a bons sentimentos, nos deixando influenciar sobre o lado ruim da vida. Estamos perdendo a capacidade de considerar gentileza, empatia e o amor como qualidades para julgá-los com desconfiança, preconceito e ressentimento. Pensamos no pior, que uma pessoa não pode ser tão boa assim, mas, e se ela for? E se ela tiver sido mais inteligente do que nós, deixando o que é bom predominar?
Para estimular essa discussão, Tom Hanks tem um papel fundamental. Ao retratar Fred Rogers, o ator se mostra meticuloso aos detalhes da personalidade do apresentador. Gestos, olhares e até o tom da fala de Hanks são importantes para que o espectador entenda a figura e os sentimentos valorizados por aquele curioso ser humano, daí a indicação ao Oscar de melhor ator coadjuvante neste ano.
"Um Lindo Dia na Vizinhança", no entanto, tem uma falha que compromete a intensidade da mensagem a ser transmitida. O filme da diretora Marielle Heller coloca o foco do roteiro no jornalista que escreve sobre Rogers e empaca no desenvolvimento do personagem. Fica difícil "comprar" a jornada do protagonista, que passa do ceticismo ao fascínio pelo apresentador, quando o roteiro não se aprofunda nas mágoas e dramas dele. Essa trajetória acaba soando muito superficial e impacta na forma como o público se envolve com a reflexão pretendida.
Mesmo com esse enfraquecimento da narrativa" Um Lindo Dia na Vizinhança" ainda é um daqueles filmes que deixa o espectador com bons sentimentos ao terminar. Além de um sorriso no rosto no fim, paramos para pensar sobre a força que o genuíno amor ao próximo pode ter na vida, modificando as relações que temos com os demais e, em alguma medida, o mundo. Ao invés de céticos e raivosos, podíamos tentar ao estilo Fred Rogers: nos importando mais, ouvindo e sendo gentis uns com os outros. Que tal?
Em tempo: sugiro, como experiência complementar, o documentário "Won´t You Be My Neighbor?", lançado em 2018, que se aprofunda na personalidade de Fred Rogers e nos julgamentos feitos sobre ele. Fica ainda mais enriquecedor para conhecer e entender a reflexão estimulada por essa figura.
UM LINDO DIA NA VIZINHANÇA
COTAÇÃO: ★★★ (bom)
WON´T YOU BE MY NEIGHBOR?
COTAÇÃO: ★★★★ (ótimo)