Erick Rodrigues
Quem acompanha com atenção e entusiasmo a “Stranger Things” viu a série, nos dois primeiros anos, se consolidar com um dos melhores entretenimentos produzidos nos últimos tempos para o gênero, que explora bem a nostalgia do espectador e referências da cultura pop para criar um produto divertido e digno de uma boa maratona. Por conta dessa trajetória, o melhor de assistir à terceira temporada da atração, já disponível na plataforma de streaming Netflix, é perceber o importante amadurecimento da história e como ela se coloca para o futuro.
Os novos episódios se sustentam, basicamente, em dois eixos. O primeiro é a abordagem adotada para os protagonistas, que vivem uma transição da infância para a adolescência. Conscientes de que o elenco cresceu diante das telas, os criadores da série entenderam que não poderiam continuar retratando os personagens da mesma forma que nas temporadas anteriores e, por isso, providenciam conflitos condizentes com a faixa etária. Por isso, a puberdade torna-se um fator importante no roteiro.
Agora, as crianças deixam de lado as brincadeiras fantasiosas e o RPG para enfrentar as dúvidas e descobertas típicas dessa fase da vida. Na terceira temporada, os protagonistas de “Stranger Things” ocupam quase todo o tempo livre com namoros e problemas de relacionamento com o sexo oposto. O casal Mike (Finn Wolfhard) e Eleven (Millie Bobby Brown), por exemplo, passa muito tempo junto, o que acaba deixando o grupo de amigos mais distante. Essa proximidade também incomoda Hopper (David Harbour), que lida com a novidade e os sentimentos causados pelo fato de ter uma adolescente em casa.
Em determinado momento, o casal se desentende, fazendo com que Eleven se aproxime de Max (Sadie Sink) e tenha mais contato com o universo das meninas da idade dela. Enquanto isso, Mike volta a passar o tempo com Lucas (Caleb McLaughlin) e Will (Noah Schnapp), sendo que apenas o último não está interessado em relacionamentos amorosos. Essa, aliás, é um abordagem interessante da série, sobre como os adolescentes têm tempos distintos para amadurecer e que é preciso compreender e respeitar essa transição.
Além dos conflitos amorosos, a adolescência também pode trazer a insegurança de que as amizades mudaram. Na volta de um acampamento, Dustin (Gaten Matarazzo) encontra o grupo fragmentado e fica inseguro sobre a solidez dos laços que unem os amigos. A descrença dos colegas sobre a existência de uma namorada também aumenta a distância entre os personagens.
O segundo eixo importante da terceira temporada de “Stranger Things” é a nova ameaça que atinge a cidade de Hawkins. Acreditando terem fechado o portal para o Mundo Invertido, os protagonistas são surpreendidos pela chegada de uma criatura conhecida, que quer eliminar os humanos. Sem conseguir influenciar Will, o ser precisa de um novo hospedeiro para colocar o plano em prática e o escolhido para isso é Billy (Dacre Montgomery), que passa a perseguir a população local para criar uma maneira de dar corpo ao vilão.
A ameaça aos personagens também está ligada a planos do governo russo, que se infiltra em Hawkins com um propósito misterioso. Quem percebe que alguma coisa está errada é Joyce (Winona Ryder), bastante influenciada pelos traumas e acontecimentos das temporadas anteriores. Com a ajuda de Hopper, ela segue pistas para desvendar os interesses da Rússia naquela área.
Apesar de usar descaradamente temas muito recorrentes na indústria do entretenimento, especialmente daquela vinda dos Estados Unidos, “Stranger Things” nem de longe parece um clichê gratuito e pouco criativo. O grande diferencial é que o roteiro sabe construir uma história sólida usando esses elementos mais como uma homenagem e até uma sátira à cultura pop. Referências cinematográficas e caricaturas são usadas com humor e propósito, dando movimento à trama e proporcionando um delicioso divertimento em quem assiste.
Um exemplo que pode ilustrar bem isso é a inclusão dos russos no enredo da terceira temporada. A Rússia e a abordagem vilanesca desse governo é quase uma obsessão para Hollywood e a indústria de séries norte-americana. Em “Stranger Things”, esses personagens aparecem como caricaturas e servem como uma sátira a essa visão, presente, inclusive, em filmes da década de 80, retratada pela história.
Além da transição do elenco jovem para a adolescência, é interessante notar como os personagens, de uma forma geral, também ganharam mais camadas. Aos poucos, eles vão deixando aquelas personalidades “retas” e ganham profundidade a medida que os conflitos crescem ou se transformam em outros.
Gosto da inteligência do roteiro em ramificar os acontecimentos, criando núcleos que vão desvendando partes da trama até convergirem no final. Assim, além de apresentar um universo mais amplo, os episódios também permitem que cada personagem tenha espaço e importância bem definidos. Vale destacar, ainda, que a intensidade da história, com uma abordagem menos infantilizada e esteticamente pendendo para o lado do terror, acompanhou o amadurecimento dos protagonistas.
“Stranger Things” proporciona mais uma temporada ótima para maratonar, sustentada por uma história e personagens mais maduros. Mais do que isso: o gancho deixado para o quarto ano da série sinaliza que esse amadurecimento surge com um entendimento de que a atração pode estar pronta para fechar o ciclo na plataforma, sob o risco de se perder em repetições se o sucesso incontestável se sobrepuser ao planejamento e qualidade necessários para consolidação de um produto coerente.
STRANGER THINGS (terceira temporada)
ONDE: Netflix (todos os episódios disponíveis)
COTAÇÃO: ★★★★ (ótima)