Erick Rodrigues
Quando venceu o Globo de Ouro, lá no início de janeiro, o diretor sul-coreano Bong Joon-ho tinha uma mensagem muito clara à indústria do cinema norte-americana. Na ocasião, sugeriu que o público e os especialistas do país deveriam superar a barreira do idioma para conhecerem outros universos incríveis. A fala, com uma crítica embutida nela, não foi apenas parte de um discurso. Os norte-americanos, de uma forma geral, não são simpáticos aos filmes com legenda e, apesar de exportarem e até imporem a língua inglesa para o resto do mundo, sempre se mostraram reticentes diante de obras cinematográficas de outros países.
A Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood foi criada para a valorização da cultura norte-americana e se transformou em uma forma de retratar e difundir hábitos da nação. Com o passar dos anos, o Oscar foi se tornando um clube restrito, marcado por muita tradição e discussões políticas. O bairrismo sempre predominou, ainda que, de vez em quando, forasteiros fossem chamados para as festas.
Não é de hoje que Hollywood identifica o talento e a diversidade das histórias contadas pelo cinema de outras partes do mundo, mas, até então, a atitude da indústria era tentar se apropriar dessas ideias para transformá-las em produtos "genuínos", forjados pela "genialidade" norte-americana. Diante de tudo isso, a vitória de "Parasita" no Oscar 2020 tem muito mais significado.
O longa da Coreia do Sul foi conquistando público e crítica desde o ano passado, mas muitos acreditavam que a visão tradicional da Academia predominaria quando chegasse o Oscar. Nesse cenário, "1917", filme do diretor Sam Mendes, parecia se credenciar como favorito. Além de ter uma proposta técnica arrojada e contar com um tema muito bem quisto por Hollywood, a guerra, a produção também venceu alguns troféus que servem de "termômetro" para a cerimônia, como o Producers Guild Awards. Mas, "Parasita" foi ganhando espaço em um ambiente mais favorável à diversidade.
Há alguns anos, a Academia foi muito cobrada para que se abrisse às diferenças. Isso gerou um movimento, com tom político no início, de convidar profissionais de outros países e com visões diferentes sobre a indústria para serem membros. Esses novos olhares foram, de forma gradual, tentando impor algumas mudanças no prêmio e a vitória de "Parasita" é, por enquanto, a mais significativa delas.
Além do Oscar de melhor filme, a obra de Bong Joon-ho também levou outros três prêmios importantes da cerimônia: direção, filme internacional e roteiro original. Em uma das vezes que subiu ao palco para agradecer, Joon-ho falou sobre as influências como cineasta e citou Martin Scorsese, ícone da indústria que concorria na mesma categoria por "O Irlandês". Foi um belo reconhecimento de um profissional que, durante a carreira, foi influenciado por pessoas e elementos de Hollywood. Como ele, muitos outros criaram repertório e alimentaram o sonho de fazer cinema consumindo produtos norte-americanos e estava na hora da Academia reconhecer o talento deles, representados pela figura do sul-coreano.
É claro que as circunstâncias não podem ser apontadas como únicas responsáveis pela vitória de "Parasita" no Oscar. O filme é uma obra refinada que, além de entretenimento, também proporciona reflexões importantes para o mundo. O longa olha para o abismo criado para a desigualdade social, que produz conflitos e injustiças em vários idiomas.
Misturando diferentes gêneros, "Parasita" constrói uma narrativa surpreendente, em três atos bem definidos. Primeiro, em um tom satírico, o roteiro mostra como a família Kim, que vive em dificuldades financeiras, usa todas as práticas possíveis para se inserir no universo dos Park, que moram em uma área nobre e têm uma vida privilegiada.
A história ganha densidade quando os Kim começam a descobrir segredos por trás das aparências da casa luxuosa dos Park. No terceiro e último ato do filme, o abismo entre esses universos se transforma em uma "panela de pressão", que explode na cara do espectador e deixa a reflexão sobre a indiferença diária que temos em relação a realidades distintas.
Pouco sutil, o roteiro de "Parasita" aposta em muitas situações que parecem absurdas para tornar bastante evidente as diferenças e o choque entre os estilos de vida. Com inteligência, o diretor usa até a ambientação da história para provocar reflexões. Assim como nosso dia a dia, a geografia do filme é importante para entendermos a desigualdade social do mundo, onde os ricos vivem acastelados e distantes das dificuldades dos mais pobres.
"Parasita" conseguiu romper a barreira do idioma e teve a excelência reconhecida por Hollywood, caminho construído, é importante reconhecer, por milhares de produções e profissionais estrangeiros que tentaram o mesmo. As qualidades da produção de Bong Joon-ho encontraram pela frente um cenário mais favorável para a produção de filmes internacionais na Academia, com a chegada de novos votantes e as exigências por diversidade. Não se enganem, no entanto, que essas sejam as únicas justificativas para a vitória sul-coreana. Essa também foi uma decisão política, diante da perda de público e até de relevância do prêmio. Fazendo isso, a Academia sinaliza que está disposta a mudar para permanecer influente e precisa continuar assim. Saberemos daqui para frente se a "bolha" da indústria cinematográfica norte-americana foi rompida de vez ou se só deu um "gostinho" de diversidade a um público ávido por mais criatividade.