Matheus Moreira, FOLHAPRESS
Na frente do Teatro Liberdade, na região central de São Paulo, um homem gravava, por volta das 8h20 da manhã de domingo (10), vídeos com pessoas em uma aglomeração. Ao fim de cada entrevista, ele puxa o bordão "a Terra é", ao que os mais próximos respondem "plana!". Todos ali esperavam o início da primeira Convenção Nacional da Terra Plana, a FlatCon.
Com um público de cerca de 400 pagantes, segundo os organizadores, o evento reuniu pessoas de diferentes profissões e regiões do país, todos com a crença em comum de que a Terra não é redonda.
Outro denominador comum é o YouTube como fonte de informações.
Foi lá que o corretor de imóveis Daniel Vannucci da Fonseca, 43, diz ter descoberto as ideias que movem os grupos de terraplanistas. Ele diz ter viajado de Belo Horizonte a São Paulo para ir ao evento e "fortalecer o movimento".
Jota Marthins, um dos principais youtubers terraplanistas, também passou a duvidar do formato da Terra depois que assistiu a um vídeo sobre o assunto. Desde então, diz que faz testes para verificar a curvatura da Terra. Ele não revela sua profissão ou formação e se define como pesquisador e escritor.
Seu canal, o Sem Hipocrisia, tem 119 mil inscritos e vídeos que dizem que a Terra é plana, negam que houve ditadura militar no Brasil e afirmam que o islamismo está implantando sua lei na Europa e no Brasil.
O youtuber também diz acreditar que há grupos secretos que buscam dominar as pessoas por meio do controle da informação. Questionado sobre quais seriam os grupos, Marthins preferiu não dar nomes, mas disse à Folha que já foi ameaçado por "eles".
Já o auxiliar de cozinha Izaias Assis, 56, que veio de Uberlândia para participar da Flatcon, tem menos papas na língua. Segundo ele, os dominadores –como muitos terraplanistas chamam os que afirmam que a Terra é redonda– incluem iluminatis, maçons, ingleses e a Nasa (agência espacial americana).
Assis diz que tinha dúvidas sobre o formato da Terra desde que era adolescente. "Eu me perguntava: "Como as pessoas podem ficar de cabeça para baixo e não cair?". Nunca acreditei [que o planeta é esférico], apesar de ter precisado colocar nas provas escolares que a Terra era um globo."
Hipóteses não faltam no evento para explicar que a Terra é "plana e estacionária", frase repetida à exaustão.
O primeiro palestrante do dia, o youtuber Anderson Neves, diz que as fotos da Terra que comprovam a sua esfericidade são montagens ou foram tiradas com lentes grande angulares, com maior abertura.
"A Terra é plana. Existe uma manipulação da mídia para esconder a verdade. Nós verificamos os fatos. A gravidade, por exemplo, é uma palavra mágica usada para induzir as pessoas. Será que não deveríamos sentir o movimento da Terra?", questiona.
Neves, assim como muitos participantes, associa o que chama de mentira sobre o formato da Terra às "falácias da ida do homem à Lua e do aquecimento global". Marthins, por exemplo, diz que a viagem à Lua foi uma simulação necessária para que a discussão sobre o formato da Terra chegasse ao fim.
O jornalista e organizador do evento, Jean Ricardo Gonçalves, 44, concorda. "Por que somente os EUA estiveram lá?". Na verdade, missões não tripuladas da Rússia e da China já pousaram suavemente na Lua –recentemente, Índia e Israel também tentaram o feito, sem sucesso.
Para ele, as mudanças climáticas são eventos cíclicos naturais e o aquecimento global é lucrativo, porque ajuda a vender produtos recicláveis e influência de uns sobre outros.
Já se sabe que a Terra é redonda há pelo menos 500 anos. A primeira confirmação veio por meio da expedição do português Fernão de Magalhães que promoveu a primeira volta ao mundo.
O objetivo de Magalhães, porém, nunca foi dar a volta. Quem concretizou o feito foi o espanhol Juan Sebastián Elcano, que assumiu o controle da viagem após a morte de Magalhães nas Filipinas.
Os primeiros indícios de que a Terra é redonda datam, porém, de muito antes. Discípulos de Pitágoras (séc. 6 a.C) já observavam a ocultação de navios distantes pelo horizonte.
A primeira medição da circunferência da Terra, que tinha uma margem de erro entre 44.000 e 46.000 km (o número preciso conhecido hoje é 40.075 km), foi feita por Eratóstenes (séc. 3 a.C.). Na época de Galileu (séc. 16 d.C.), a Terra esférica já era um consenso entre filósofos naturais.
Insistir no oposto demanda o esforço de refutar evidências desde os gregos antigos até fotografias de astronautas, passando por Kepler, Newton e Einstein.
No Brasil, 7% da população acredita que a Terra é plana, segundo pesquisa Datafolha de julho deste ano. O levantamento foi feito com 2.086 entrevistados maiores de 16 anos em 103 cidades pelo país.
O Datafolha indica que, quanto menor a escolaridade, maior a crença de que a Terra é plana. Os mais velhos são os que mais duvidam que o planeta seja redondo. Além disso, a crença na Terra plana também é maior entre os católicos e os evangélicos do que entre os ateus.
Entre os terraplanistas, há uma divisão entre os ateus ou agnósticos e os criacionistas, que rejeitam a teoria da evolução de Darwin.