Maurício Meireles, FOLHAPRESS
No quarto 59 do hotel, um corpo está estendido no chão, morto a tiros. Tem um corte fundo no pescoço e golpes de faca no peito – desferidos apenas por raiva, pelo visto, porque as balas já tinham sido o suficiente. Também lá dentro, uma moça toda de branco e um revólver ainda quente sobre a mesa.
No bolso, o defunto trazia um lenço de seda, um relógio de prata, seu anel de formatura e seis tubos de lança-perfume – o crime ocorreu na terça de carnaval de 1909. O jornal O Estado de S. Paulo descrevia a cena: “Tinha os olhos semiabertos. O seu rosto, contraído, quase deixava adivinhar a suprema angústia por que o infeliz havia passado antes de cair morto”.
O assassinato que abalou São Paulo é um dos casos que o historiador Boris Fausto narra em seu novo livro, “O Crime da Galeria de Cristal e os Dois Crimes da Mala”, que chega agora às livrarias.
São três homicídios unidos por semelhanças. Todos se passam na São Paulo do começo do século 20 e trazem as mulheres no centro da trama – como assassinas, vítimas ou pivôs do crime.
No da Galeria de Cristal, que abre esta reportagem, quem puxou o gatilho foi Albertina, uma professora primária. Quatro anos antes, tivera um caso com o morto, engravidou e foi abandonada. Casada de novo, tramou com o marido a vingança.
“O da galeria eu acho o mais importante, porque tem uma ré mulher. Isso não era tão raro, mas também não chegava a ser incomum. E ela está lavando a sua honra. Isso dá abertura para pensar em questões de gênero, como se diz hoje”, diz Fausto.
O pesquisador faz no livro o que se chama de micro-história, gênero no qual é comum tirar de fatos aparentemente banais do passado uma dimensão social. A obra de permite vislumbrar o lugar da mulher naquela sociedade, um começo de feminismo que começava a surgir, os tribunais do início do século, a profissionalização da imprensa e o crescimento do sensacionalismo.
Nesse gênero, os chamados “faits divers” (fatos diversos) ganham importância. A expressão em francês designa as notícias inusitadas, hoje multiplicadas pela internet em manchetes como “Elefantinho toma banho de piscina”, “Mulher é presa depois de latir para cão da polícia” ou “Dupla invade casa, lava roupas, toma banho e faz café”.
No crime da galeria, a história começa a se desdobrar como um novelão daqueles, e a opinião pública de divide. Para uns, é claro, Albertina era uma abominável rameira de quinta categoria. Mas o que surpreende é o apoio que ela recebe.
Grávida, Albertina acabou virando aos olhos de boa parte do público uma professorinha inocente que apenas limpara a própria honra, matando um sedutor sem escrúpulos que a humilhara.
Da cadeia, chegou a escrever na imprensa: “Se eu, um dia, tivesse a honra de colaborar na redação do Código [Penal] de minha pátria, estabeleceria a punição de trinta anos para os sedutores que não reparassem o mal, se houvesse a impossibilidade de puni-los com a guilhotina”. O casal acabou inocentado. “Esse caso nos mostra que, olhando de perto, essa era uma sociedade mais complexa do que [a ideia da] mulher no lar e o marido que traz o provento”, diz Fausto.
A outra morte do qual o historiador trata permite conhecer um pouco da vida dos imigrantes sírio-libaneses na região da 25 de março. Nesse caso, o jovem Michel Trad, imigrante sírio, é flagrado em um navio com uma mala que fede muito. Quando ela é aberta, revela-se um corpo em seu interior, vestido com um terno de casimira. Não era sempre que surgia um defunto tão bem vestido.
O morto era Elias, seu amigo e protetor, e Trad é preso. O novelão logo se desdobra: ele teria despachado a vítima para a terra dos pés juntos porque tinha um caso de amor com sua mulher, Carolina.
Logo encontram-se cartas em francês entre os dois. Trad teria sido levado ao crime por uma paixão desesperada? Carolina participara do plano? Ela chega a ser presa, mas ele assumiu toda a culpa.
No último homicídio, Fausto conta a história de Giuseppe Pistone, um vigarista italiano que mata a mulher grávida, Maria Féa, e depois tenta despachá-la de navio para a Europa dentro de uma mala. Hoje enterrada em Santos, a mulher virou uma santa popular -e acólitos rezam em seu túmulo pedindo milagres.
“Houve muita briga sobre a utilidade ou inutilidade da micro-história. Mas são ondas que vão e veem, mas são maneiras válidas de abordar a história. Uma abordagem estrutural tem vantagens que a micro-história não tem, e vive-versa. Só que micro-história, para o meu gosto, é mais divertido”, diz Fausto.