Cláudia Collucci, Folhapress
O infectologista David Uip, de 67 anos, afirma que pico da pandemia de Covid-19 no estado de São Paulo deve ser em maio, mas ainda não sabe em qual semana do mês isso acontecerá nem se a quarentena em vigor até o próximo dia 22 será estendida até lá.
Recém-recuperado da infecção, o médico que coordena o grupo de enfrentamento da doença que auxilia o governo paulista na tomada de decisões se esquiva de assuntos ligados ao governo federal, como a saída do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, e as atitudes do presidente Jair Bolsonaro contra o isolamento social.
"Eu não quero discutir governo federal", diz ele, taxativo. Uip se queixa dos ataques sofridos por ter se recusado a dizer se tinha usado ou não cloroquina no seu tratamento.
Uma receita médica com prescrição de cloroquina para o infectologista circulou nas redes sociais na semana passada. E Bolsonaro publicou um vídeo em que questiona se Uip usou a substância no seu tratamento. O médico pediu respeito ao presidente.
"Eu tomei a única decisão ética que eu poderia ter tomado. [Enfrentar os ataques] foi muito difícil para todo mundo. Foi estendido para os meus irmãos, cunhadas que tem Uip [no sobrenome], meus filhos e netos. Foi muito, muito, muito sofrido."
O médico afirma que é preciso levar esperança para as pessoas que adoecem de Covid-19. "É um quadro grave muitas vezes, mas há perspectiva do tratamento. As pessoas podem sair vivas. Eu saí vivo."
Pergunta - Estudo na revista Science diz que o distanciamento social pode ser necessário até 2022 se não houver vacina. O governo paulista tem planos a logo prazo?
David Uip - Não. A gente está acompanhando todos esses trabalhos, mas não dá para fazer essa projeção por enquanto. Há duas variáveis importantíssimas: pode surgir antes um medicamento e, depois, a vacina. Não ajuda fazer projeções para mais tempo.
O ministro Mandetta já disse que em maio e junho serão os piores meses. É a mesma avaliação para São Paulo?
DU - Ele fala de Brasil. Aqui estamos prevendo que será em maio, mas não dá para precisar qual a semana de maio.
E a ideia é estender a quarentena até lá?
DU - Ainda não está sendo discutido, não falamos disso ainda.
Como conseguir equilibrar a missão de salvar vidas por Covid-19 e salvar vidas por fome e desemprego?
DU - Esse é o desafio. Todo mundo está preocupado com as duas coisas, as pessoas e o vírus. Por isso, nós da saúde, estamos estudando, procurando novas informações para subsidiar cientificamente qualquer decisão. A preocupação é de todo mundo. As políticas sociais dos governos federal, estadual e municipal são fundamentais.
As pessoas já sem mostram impacientes com a quarentena. Como estimulá-las a continuar em isolamento?
DU - Informação, informação, informação. Transparência, transparência, transparência. O governador determinou essas [entrevistas] coletivas da saúde justamente para ter mais tempo de explicar os números de infectados, perfil, faixa etária, complicações, comorbidades, número de leitos ocupados, de UTI.
Mas ainda há queixa de falta de transparência dos dados de São Paulo, como perfil de internados, de insumos, afastamento etc...
DU - Essa é uma boa sugestão para melhoramos os dados, isso tem que fazer parte da coletiva.
Até que ponto as atitudes do presidente em relação ao isolamento social podem afetar as políticas paulistas?
DU - Eu não quero discutir governo federal, eu não quero discutir Brasília. Eu não tenho nenhum cargo político, eu tenho a coordenação de um grupo importantíssimo, que eu acho que está ajudando muito, a nossa função é ajudar cientificamente nas decisões do governador João Doria.
Temos lido sobre a possibilidade de reinfecção do coronavírus. Vocês já trabalham com essa hipótese?
DU - Nos casos que eu vi descritos ainda não está claro se é reinfecção ou reativação do vírus. São indivíduos que, teoricamente, não fizeram anticorpos protetores? Isso está começando a ser estudado e precisa ser mais bem entendido.
Qual o grande desafio da assistência nesse momento?
DU - Dar condições para que os sistemas público e privado atendam todas as pessoas. Desde recursos humanos treinados até uma boa estrutura hospitalar. Não é só médico intensivista, é fisioterapeuta, enfermagem. E tudo protocolado. Todo mundo tem que ter claramente o que fazer e em que momento. Esta é uma doença claríssima: é uma doença infecciosa viral que leva a uma resposta inflamatória diversa. Nos casos mais graves, fenômenos tromboembólicos. É uma doença multivisceral, não pega só pulmão, pode pegar o sistema hepatobiliar, o sistema renal cardiovascular, e muitas vezes tem complicações bacterianas secundárias.
Outro gargalo tem sido a falta de testes diagnósticos. Há alguma solução a curto prazo?
DU - Temos uma boa rede montada envolvendo os laboratórios públicos, o Adolfo Lutz. O problema de limite foi a falta de insumos. Hoje [terça, 14], o Dimas Covas falou que chegaram em insumos para mais de 750 mil kits e temos programação para ter mais. Isso deve desafogar o sistema.
Como estimular profissionais de saúde nesse momento de tanto medo e insegurança?
DU - Eu sou um profissional de linha de frente, que adoecei e voltei. Tem uma porção de intensivistas, infectologistas, enfermeiras que adoeceram e estão voltando. Nós temos missões, isso vem lá de dentro. Você pode incentivar, dar apoio, promover tudo o que é proteção possível, mas é mais que é isso, o indivíduo tem uma missão. O medo é um sentimento legítimo de todo mundo. Quando adoecei, eu tive medo por mim, medo de ter contaminado mais alguém, minha família.
Alguém da sua família se contaminou?
DU - Não. Minha mulher fez dois exames de PCR, os dois negativos e ontem ela fez a sorologia, também negativa. Meus filhos e netos estão afastados.
A sua doença surpreendeu muita gente. Mesmo com todos os cuidados, o sr. se infectou. Tem ideia como aconteceu?
DU - Aqui na clínica, ninguém apresentou sintomas. Atendemos todos os pacientes com máscara e, quando há suspeita de infecção viral, com avental, luvas, máscara, óculos. Isso há muito tempo. Em hospitais onde trabalho, há total segurança, o protocolo é extremamente exigente. Como eu poderia me prevenir? Olha as entrevista que eu dei! Olha o número de pessoas que eu convivi no dia a dia, fora o consultório e hospitais! Não tinha jeito. Eu não fiquei isolado, fiquei na linha de frente.
O sr. teve outra grande dor de cabeça com a história do uso da cloroquina, inclusive ter sido exposto pelo presidente Bolsonaro. Algum arrependimento?
DU - Eu tomei a única decisão ética que eu poderia ter tomado. Eu não posso eticamente divulgar dados individuais de resultados de qualquer coisa que tenha sido o meu tratamento. Qualquer coisa que eu falasse ia levar a sociedade de um lado a uma expectativa, de outro, a uma desesperança. Sem entrar em nenhuma polêmica de indicação ou não desse remédio. Naquele momento eu estava doente e sendo tratado, não poderia e não posso transformar isso em exemplo de coisa nenhuma.
Foi difícil enfrentar os ataques nas redes sociais?
DU - Foi difícil para todo mundo, inclusive para a minha família. [O surto de ataques] foi estendido para os meus irmãos, cunhadas que têm Uip [no sobrenome], meus filhos e netos. Foi muito, muito, muito sofrido. Eu sou um indivíduo que só está ajudando, eu não tenho cargo público. Fui convidado pelo governador para coordenar um grupo de pessoas que têm experiência e são grandes cientistas.
Então é uma postura de missão, de ajudar a sociedade, tentando fazer o melhor possível. Eu já estive à frente do [Hospital] Emílio Ribas, na epidemia do H1N1, fui secretário de estado da Saúde quase cinco anos, vou completar 45 anos de formado no fim do ano, faço 68 anos nesta quinta [16], como é que eu poderia me eximir de participar de um embate que move o mundo?
Como o sr. está vendo essa polêmica sobre a cloroquina?
DU - Não entro nisso. Eu ajudei o Ministério da Saúde naquilo que fui chamado, mas eu acho que não cabe mais essa discussão.
Tem algo realmente promissor no front em termos de terapias para a Covid-19?
DU - Estamos acompanhando tudo o que está acontecendo, desde medicamentos que já existem e que estão sendo testados para o coronavírus até novos que estão sendo estudados. Eu tenho otimismo de que em algum momento vai se descobrir o medicamento certo, e, num segundo momento, a vacina preventiva. Os maiores pesquisadores do mundo estão envolvidos nisso.
Qual a principal mensagem neste momento?
DU - Estou vivo. A gente precisa levar esperança para as pessoas que adoecem. É um quadro grave muitas vezes, mas há perspectiva do tratamento. Estamos vendo casos com idades diferentes, como comorbidades, que estão saindo vivas. Há esperança, a despeito da contaminação. É fundamental que essa ciência investigativa continue trabalhando como sempre trabalhou, na vanguarda, procurando soluções. Sempre tive e tenho muito otimismo na ciência.