Natália Cancian e Thiago Resende, FOLHAPRESS
Após o Ministério da Saúde reconhecer ter recusado tentativas iniciais da Pfizer para vender vacinas ao país, as críticas à gestão do governo de Jair Bolsonaro (sem partido) na pandemia aumentaram. Partidos de oposição voltaram a pedir o impeachment do presidente.
Apesar de a americana Pfizer ter chegado a enviar uma carta de intenção para a venda de 70 milhões de doses ao Brasil, a pasta de Eduardo Pazuello (Saúde) afirmou, em nota neste sábado (23), que um acordo com a empresa "causaria frustração em todos os brasileiros".
A companhia procurou o governo, mas não houve avanços. Em dezembro, o presidente da Pfizer no Brasil, Carlos Murillo, disse que seria possível começar a vacinação quase imediatamente após um registro emergencial da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). Dependendo da celeridade do órgão, as doses poderiam ser aplicadas já em janeiro.
Em reunião virtual com deputados, ele chegou a se comprometer com a entrega das doses até os pontos de vacinação a serem definidos pelo governo, não só o desembarque em um aeroporto brasileiro.
Ao reconhecer que as negociações foram rejeitadas, o Ministério da Saúde afirmou que doses da Pfizer "seriam mais uma conquista de marketing, branding e growth [jargões do mundo corporativo relativos ao incremento da marca] para a produtora de vacina, como já vem acontecendo em outros países".
"Já para o Brasil, causaria frustração em todos os brasileiros, pois teríamos, com poucas doses, que escolher, num país continental com mais de 212 milhões de habitantes, quem seriam os eleitos a receberem a vacina", afirmou, em nota, o governo, alegando que empresa, que desenvolveu uma vacina em conjunto com a BioNTech, previa entrega de 2 milhões de doses no primeiro trimestre, "número considerado insuficiente pelo Brasil."
A importação do mesmo montante (2 milhões) da vacina de Oxford pela Fiocruz na sexta-feira (22), por outro lado, foi celebrada pelo Ministério da Saúde, em meio a críticas e falhas que colocam em risco o cronograma de vacinação no Brasil, como a falta de insumos.
Além disso, ao justificar a recusa às negociações com a empresa americana, o Ministério da Saúde e Palácio do Planalto não mencionaram o total que era negociado, previsto em 70 milhões de doses.
Para a presidente do PT, deputada federal Gleisi Hoffmann (PR), a nota divulgada pelo governo "é pura confissão de culpa". "Perdemos 70 milhões de doses nessa brincadeira!".
"É a confissão de um crime: a sabotagem da vacinação no Brasil", escreveu o deputado Marcelo Freixo (PSOL) numa rede social.
Partidos de esquerda usam as críticas à atuação de Bolsonaro na pandemia para sustentar pedidos pela abertura de um processo de impeachment.
O Ministério da Saúde ficou pressionado após a "CNN Brasil" divulgar uma carta encaminhada pelo CEO mundial da Pfizer, Albert Bourla, ao presidente Jair Bolsonaro e alguns ministros em 12 de setembro.
O documento mostra que a empresa fez um apelo para que o governo fosse célere em fechar um acordo com a empresa devido à alta demanda mundial pela vacina.
"Quero fazer todos os esforços possíveis para garantir que doses de nossa futura vacina sejam reservadas para a população brasileira, porém celeridade é crucial devido à alta demanda de outros países e ao número limitado de doses em 2020", dizia o documento, segundo divulgado pela emissora.
Em resposta, o governo confirma ter recebido a carta e ter feito reuniões com a empresa, mas diz que "cláusulas leoninas e abusivas que foram estabelecidas pelo laboratório criam uma barreira de negociação e compra".
Entre as cláusulas, estão que o Brasil fizesse um fundo garantidor em conta no exterior e que fosse assinado um termo que isentasse a empresa de responsabilidade por eventuais efeitos da vacina.
Para o governo, "representantes da Pfizer tentam desconstruir um trabalho de imunização que já está acontecendo em todo o país, criando situações constrangedoras para o governo brasileiro, que não aceitarão (sic) impos ições de mercado".
Como argumento, o governo cita o total de contratos já obtidos de vacinas, que envolvem 354 milhões de doses -destes, no entanto, boa parte ainda são dependentes da liberação de insumos da China para que possa haver produção no Brasil.
Em meio às críticas, a nota diz ainda que "em nenhum momento fechou as portas para a Pfizer", mas que aguarda "posicionamento diferente do laboratório".
O governo também argumenta que a vacina da Pfizer precisa ser armazenada e transportada entre -70°C e -80°C, mas não cita que a empresa apresentou uma solução para isso. O Ministério da Saúde ressaltou ainda que o laboratório não disponibiliza o diluente para cada dose, que ficaria a cargo do comprador; não apresentou sequer a minuta do seu contrato e tampouco tem uma data de previsão de protocolo da solicitação de autorização para uso emergencial ou mesmo o registro junto à Anvisa.
Nos últimos dias, a Pfizer tem informado que as cláusulas seguem o modelo de contratos com outros países.
Nos bastidores, a empresa tem apontado ainda que só deve pedir aval para uso emergencial de doses de vacinas no Brasil caso tenha um contrato fechado com o governo.
Até agora o Brasil tem duas vacinas: a de Oxford e a Coronavac. Ambas tiveram seu uso emergencial aprovado pela Anvisa no último dia 17.
Os primeiros vacinados com o imunizante de Oxford/Astrazeneca no Brasil foram médicos da Fiocruz. A fundação aplicou as doses em um evento neste sábado (22) no Rio de Janeiro, enquanto as remessas que chegaram da Índia eram entregues ao Ministério da Saúde.
A fila começou com três médicos, e depois mais sete trabalhadores da saúde da linha de frente contra a COVID-19. A pesquisadora Margareth Dalcomo, que tem se destacado na defesa da vacina durante a pandemia, foi um deles.
"Vai chegar o dia em que nós realmente vamos poder comemorar", disse ela. "Hoje é um dia simbólico, mas nós vamos comemorar de verdade quando tivermos 70% da população brasileira vacinada, com as duas boas vacinas produzidas pelos dois grandes laboratórios brasileiros, Fiocruz e Butantan."