A retórica negacionista foi uma constante durante toda a pandemia, “flutuando em menor ou maior grau dependendo do quão belicoso o governo se posicionou”, avalia José Gallucci Neto, do Instituto de Psiquiatria (IPq) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP. Em pautas críticas, como vacinas, e adoção de medidas não farmacológicas, esse foi um negacionismo orquestrado pelos seguidores do governo federal e que, para ele, trouxe dois impactos principais. “Primeiro na própria saúde pública, que é você ter as pessoas se contaminando sem necessidade, ao desobedecer regras sanitárias mínimas, como se não houvesse um problema acontecendo. Isso aumenta a mortalidade e reduz a cobertura vacinal, não só de covid. Outro impacto que eu considero igualmente importante, mas não é tão falado, é o de minar a credibilidade das grandes referências institucionais em ciência. De repente a orientação da OMS [Organização Mundial da Saúde] já não tem valor porque alguém disse que aquilo tem influência ideológica ou há algum interesse comercial envolvido. Ou a Anvisa já não tem mais a palavra final sobre determinado assunto porque teria alguém infiltrado ali.
Assim, argumenta Gallucci, há uma perda de confiança nas grandes instituições ligadas à saúde. “A gente pode colocar aí os grandes periódicos científicos, as universidades… A palavra que vem da Universidade já não passa tanta segurança para a população quanto a de um cara que tem um canal no Youtube e diz que a pandemia é uma fraude, por exemplo”, avalia, relatando ter recebido muitos telefonemas esta semana de pessoas próximas questionando se dá para confiar na decisão da Anvisa sobre a vacina infantil. “Pessoas que nunca questionaram isso antes, pessoas letradas, mas que recebem informações de grupos negacionistas questionando a idoneidade dessas instituições”, lamenta.
Para ele, o silêncio dos Conselhos Regionais e Federal de Medicina e até da Universidade quanto ao comportamento de alguns dos seus membros acaba dando força para o movimento negacionista. “A Universidade também não pode mais ser passiva, ela precisa se manifestar de alguma forma, se posicionar sobre seus profissionais. Não é querer proibir as pessoas de falarem, mas deixar muito claro que aquilo não representa a visão da Universidade. Eu acho que isso tem que ser feito com mais frequência, sabe? Essa sinalização ainda é muito dependente de pressão, e precisa ser mais espontânea. Não dá mais para ficar esperando acontecer a tragédia. O resultado de tudo isso que nós estamos vendo está escancarado no número de mortos, na queda de cobertura vacinal… Nós vamos colher os frutos desses dois anos de negacionismo pelos próximos cinco a dez anos”, prevê José Gallucci.