09 de Outubro de 2024
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Mulher e criança receberão R$ 100 mil por mau uso de scanner em penitenciária

Postado em: 01/10/2019

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Thaiza Pauluze, FOLHAPRESS

A fila para entrar na Penitenciária Feminina de Sant’Ana, na capital paulista, foi interrompida quando Tatiana* passou pelo scanner corporal naquele domingo. A varredura era praxe a que ela estava acostumada quando ia junto à filha, então com dois anos, visitar a avó que cumpria pena na unidade. Só que dessa vez uma agente lhe informou que havia algo em seu útero.

A mãe e a criança foram levadas a uma sala e a diretoria do presídio acionou uma viatura da Polícia Militar. A partir daí, Tatiana conta que passou a ser ameaçada e coagida por quatro policiais – três homens. Eles pediam para ela “entregar o BO”. Caso contrário, seria presa em flagrante e chamariam o Conselho Tutelar para levar sua filha.

O caso aconteceu no dia 4 de março de 2018 e foram usados nomes fictícios para proteger a identidade das vítimas.

As duas acabaram conduzidas ao Hospital do Mandaqui, próximo da penitenciária. Lá, Tatiana foi forçada a realizar exames médicos invasivos, sem o seu consentimento – já que, se não se submetesse aos procedimentos, seria presa, de acordo com as ameaças policiais.
Fizeram um exame de toque e uma coleta de sangue. Ambos deram negativo, descartando a presença de objetos em seu útero e canal vaginal. Ainda assim, a mulher passou por outros procedimentos: tomografia, ultrassom, radiografia.

Enquanto se sucediam os testes, ela conta, as agressões verbais continuaram, mesmo depois de ela informar que poderia estar grávida. Tatiana e a filha ficaram no Mandaqui por oito horas – de 12h às 20h. Nesse período, elas não puderam se alimentar ou ir ao banheiro, o que só foi autorizado pouco antes de irem embora, mas com a condição de que a porta estivesse aberta e que não apertassem a descarga, pois os agentes iriam verificar se havia algum objeto no sanitário.

Após o périplo, as duas não conseguiram visitar a avó naquele dia. Ao retornarem ao presídio, não recuperaram os pertences, que haviam sido guardados em outro turno. Mãe e filha só voltaram para casa após uma servidora da unidade oferecer a elas dinheiro para pagar o transporte coletivo.

A avó foi transferida, 22 dias depois do caso, para a Penitenciária Feminina de Mogi Guaçu -167 km mais distante de onde a família vive, num bairro periférico de Guarulhos, na região metropolitana de São Paulo.

Em nome das duas, a Defensoria Pública do Estado entrou na Justiça com uma ação de indenização por danos morais e materiais. Os defensores sustentam que elas tiveram violados os direitos à intimidade e privacidade. Também que Tatiana fora mantida em “cárcere privado e estuprada pelo Estado”.

Em 2014, o legislativo estadual paulista editou uma nova lei que prevê regras para a revista de visitantes nos presídios, na tentativa de evitar inspeções vexatórias.
De acordo com o texto, todos devem ser submetidos à revista mecânica, em local reservado, por meio de equipamentos como o scanner corporal, detectores de metais e aparelhos de raio-x.

Na hipótese de o agente identificar uma “suspeita justificada de que o visitante esteja portando objeto ou substância ilícitos”, as providências devem ser: submetê-lo novamente à revista mecânica, com outro equipamento; caso persista a suspeita, impedi-lo de entrar no estabelecimento prisional; caso insista na visita, deve ser encaminhado a um ambulatório onde um médico poderá averiguar a suspeita. Ou seja, o máximo que pode ocorrer é o visitante ser impedido de ingressar na unidade prisional.

Nesse caso, para os defensores, não havia suspeita justificada. Eles apontam que os equipamentos de scanner têm sido operados por agentes penitenciários sem formação em radiologia -no quadro da Secretaria da Administração Penitenciária não há profissionais da área.

A prática contraria regras que determinam que, para operar equipamentos emissores de radiação ionizante, é preciso ser técnico ou tecnólogo em radiologia legalmente habilitado pelo Conselho Regional de Técnicos em Radiologia de São Paulo.

O Conselho aponta que há sérios riscos em lidar com equipamentos do tipo. Por isso, técnicos em radiologia trabalham em regime de 24 horas semanais e recebem adicional de risco de vida e insalubridade. Além disso, são treinados para analisar as imagens obtidas através do scanner e para reduzir a dose da exposição.

A situação se agrava nos casos de pessoas que usam marca-passo e de mulheres gestantes ou lactantes – eles não poderiam ser expostos à inspeção. Ao perceber isso, criminosos ligados à facção criminosa PCC passaram a recrutar mulheres com prótese ou órtese (como pinos no corpo) e grávidas para entregar celulares aos detentos. Não era o caso de Tatiana.

“Mesmo após a instalação dos scanners corporais, a lógica de desumanização [nas visitas] não foi alterada, ela só tem criado novos mecanismos de punição aos familiares de pessoas privadas de liberdade”, afirmam os três defensores do Núcleo Especializado de Situação Carcerária da Defensoria que assinam o documento pedindo a indenização, Leonardo Biagioni, Mateus Moro e Thiago Cury.

Em 2 de agosto deste ano veio a sentença. A juíza Alexandra Fuchs de Araujo considerou que houve comportamento abusivo por parte dos agentes públicos. Ela conclui que eles não agiram de acordo com a lei ao forçar Tatiana a realizar exames invasivos para não ser presa, submetê-la a raio-x mesmo com suspeita de gravidez e privar a criança e a mãe de alimentação e de ir ao banheiro.

A magistrada classificou o episódio como “um dia de tortura”, porque Tatiana “se recusou a confessar a prática de um ilícito que de fato não tinha praticado”. Ainda segundo a sentença, “houve efetivo abalo à paz, à tranquilidade, à intimidade e à dignidade” das duas.

A juíza determinou que o Estado de São Paulo, sob gestão de João Doria (PSDB), pague indenização de R$ 50 mil para cada uma, além de arcar com custas e honorários do processo. A Procuradoria-Geral do Estado recorreu da decisão.

Procurada, a Secretaria de Administração Penitenciária, sob comando do coronel Nivaldo Restivo, afirmou que, em casos de suspeita de ilícitos escondidos no corpo de visitantes, o procedimento padrão é encaminha-los a uma unidade de saúde para realizar exames, com acompanhamento de PMs.

A pasta não informou se foi aberto um procedimento administrativo para apurar a responsabilidade dos agentes penitenciários envolvidos no caso. Ainda segundo a secretaria, todos os agentes que operam os scanners corporais receberam treinamento específico que abrange conhecimentos básicos de proteção radiológica e, portanto, estariam capacitados para o manuseio, seguindo ofício da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), do Ministério da Ciência e Tecnologia.

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