Phillipe Watanabe, FOLHAPRESS
O Tribunal de Justiça (TJ) de São Paulo reclassificou como importunação sexual a condenação em primeira instância de um homem por estupro de vulnerável de sua sobrinha de oito anos, abrandando a pena.
Segundo a decisão, o homem apertou o peito da criança e "esfregou acintosamente sua região genital no corpo dela". A decisão dos desembargadores João Morengui, relator do caso, e de Amable Lopez Soto acata os depoimentos em que a criança acusa o tio de ter praticado atos libidinosos em duas ocasiões e reconhece que ocorreu um crime, mas afirma que o ato cometido não tinha gravidade suficiente para configurar estupro de vulnerável.
Assim, a pena imposta de 18 anos e oito meses de prisão, inicialmente em regime fechado, transformou-se em um ano, quatro meses e dez dias de prisão em regime aberto e com substituição da privação de liberdade por prestação de serviços.
Também participou do julgamento o desembargador Paulo Rossi, que votou contra a reclassificação. A ação está sob segredo de justiça.
Segundo o relator na decisão, "ao aludir a outros atos libidinosos alternativamente à conjunção carnal, o legislador não visou qualquer conduta movida pela concupiscência, mas apenas aquelas equiparáveis ao sexo vaginal", diz, referindo-se ao artigo 217A do Código Penal (CP).
"E os atos praticados pelo apelante ao fazer a vítima se sentar em seu colo e movimentá-la para cima a fim de se esfregar nela e apertar os seus seios por óbvio, não possuem tal gravidade."
O desembargador afirmou também que o ato do réu fica entre "contravenção e o estupro, melhor se amoldando ao art. 215A do CP", artigo que trata de importunação sexual, ou seja, a prática de ato libidinoso na presença de alguém sem que essa pessoa dê consentimento. A pena para esse tipo de conduta é de 1 a 5 anos de prisão.
O crime de importunação sexual passou a ser definido em 2018. Um ano antes, ganhou atenção nacional o caso de um homem que ejaculou em uma mulher dentro de um ônibus, na avenida Paulista, em São Paulo.
A decisão do TJ vai na contramão de entendimentos de cortes superiores, como o STJ (Superior Tribunal de Justiça) e do STF (Supremo Tribunal Federal).
O entendimento do STJ se dá pela súmula 593, na qual o tribunal afirma que o estupro de vulnerável é configurado pela "conjunção carnal ou prática de ato libidinoso com menor de 14 anos, sendo irrelevante o eventual consentimento da vítima para a prática do ato, experiência sexual anterior ou existência de relacionamento amoroso com o agente".
Em outro caso recente, o STJ, por ação interposta pelo Ministério Público de Minas Gerais, afastou a possibilidade de reclassificação em um caso em que o acusado havia tocado a genitália da vítima sobre a roupa da mesma. A decisão do recurso do caso afirmou que o ato "não se revestiu de tamanha gravidade a ensejar uma condenação desproporcional à infração cometida".
O STF (Supremo Tribunal Federal) também já decidiu contra a redução de pena para atos libidinosos contra crianças. No caso em questão, um homem havia dado um beijo lascivo em uma criança de cinco anos de idade. Antes, o TJ-SP havia reclassificado o ato de estupro de vulnerável como contravenção penal de molestamento.
O ministro do STF Alexandre de Moraes afirmou, defendendo a manutenção da condenação por estupro de vulnerável, que "não houve conjunção carnal, mas houve abuso de confiança para um ato sexual".
Especialistas ouvidos pela reportagem afirmam que, em casos como esse, é necessário levar em conta que o crime envolve uma criança menor de 14 anos, o que necessariamente se enquadra em um caso de violência presumida e, assim, estupro de vulnerável.
"Nessa faixa etária, não cabe essa reclassificação que ocorreu", afirma Thais Nascimento Dantas, vice-presidente da comissão de defesa dos direitos da criança e do adolescente da OAB-SP. "Sempre que se trata de uma pessoa com menos de 14 anos se presume vulnerabilidade. Ela não tem condições de dar consentimento e há uma disparidade de poder muito grande, o que faz com que qualquer tentativa sexual contra ela corresponda a um estupro de vulnerável."
Renata Rivitti, promotora coordenadora do centro de apoio operacional da infância e juventude do MP-SP (Ministério Público do estado de São Paulo), diz que vê a decisão como contrassenso.
"Temos todo um ordenamento jurídico para punir severamente crimes sexuais contra crianças e damos uma interpretação frouxa para a legislação rigorosa", diz. "A interpretação que utiliza os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade para punir com menor rigor o atentado à dignidade sexual de uma criança não atende ao melhor interesse da criança."
Rivitti afirma que a decisão parece desconsiderar ou desconhecer a escalada de atos que geralmente envolvem a violência sexual. Segundo ela, é comum que ela comece com toques sexuais disfarçados de supostas brincadeiras até se chegar, eventualmente, em um conjunção carnal.
Na decisão do TJ, o condenado disse ter justificado o ato dizendo: "O tio nunca fez isso, só se for de brincadeira". Em resposta, a menina voltou a afirmar que não se tratava de uma brincadeira e demonstrou "gestualmente como o acusado havia apertado seus dois peitos". A menina também afirma que não contou nada antes por medo de apanhar e diz que tem medo que o tio se vingue de sua mãe.
A revelação do abuso só ocorreu quando a criança foi questionada se o tio era legal. Nesse momento, ela disse não gostar dele e relatou os atos praticados pelo parente.
Dantas critica também uma visão que ela classifica como falocêntrica da decisão, em que a violência sexual se daria somente com penetração. "Deixa de considerar que os impactos de uma violência sexual, seja ela com ou sem penetração, são gigantes, especialmente quando estamos falando de crianças e adolescentes."
Um levantamento recente que analisou 82 processos do TJ-SP com o termo "importunação sexual" observou que boa parte deles continha tentativas de abrandar penas de estupro de vulnerável.
A advogada criminalista Ana Fernanda Ayres Dellosso afirma que o artigo que trata de importunação sexual só se configura quando não há violência e nem anuência da vítima. Esse tipo crime, contudo, não alterou o entendimento de que menores de 14 anos não são considerados totalmente capazes de discernir e consentir com atos libidinosos, sejam eles de maior gravidade, como conjunção carnal, ou não.
"Por isso, em relação ao menor vulnerável, uma vez que a violência é presumida, não se poderia caracterizar o artigo 215A [importunação sexual] do Código Penal", afirma a advogada.
Segundo os especialistas ouvidos pela reportagem, é necessário melhorar a qualificação de operadores do direito quanto a especificidades do campo de crianças e adolescentes, e também quanto à violência sexual, um crime com elevada subnotificação.