Sorocaba completou nesta sexta-feira (6) quatro meses da instituição do Programa “Entre-Laços”. Gestado pela de extinta Secretaria de Igualdade e Assistência Social (Sias) e, hoje, sob a tutela da Secretaria da Cidadania (Secid), essa modalidade de acolhimento de crianças e adolescentes que foram retirados da guarda de seus pais, geralmente por situação de abuso e violência, já frutificou em proteção, dignidade e felicidade. Tendo como base a mudança na lógica e no processo de acolhimento desse grupo social, olhando para sua reinserção no núcleo familiar – avós e tios –, junto a padrinhos, ou em lares cuja relação, também, é muito próxima, o programa atua de forma humanizada devolvendo crianças e adolescentes ao convívio com aqueles que, comprovadamente, lhes garantirão segurança e a condição de um desenvolvimento equilibrado, pautado no respeito e no amor. Previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o “Entre-Laços” é uma política pública de garantia do direito à convivência familiar e comunitária.
De aplicabilidade sistêmica, tanto do ponto de vista da atuação, quanto no que diz respeito ao conhecimento e avaliação dos casos, o programa congrega inúmeros agentes sociais de proteção à infância. Interdisciplinar, conta com o suporte de profissionais das esferas da assistência social e da psicologia, do Poder Judiciário, da área médica e de defesa da criança e adolescente que, juntos, proporcionam a construção de uma nova história para quem, longe de seus lares de origem, estão em casas-abrigo. (Veja matéria de Isabela Rocha em:
http://noticias.sorocaba.sp.gov.br/%ef%bb%bfherois-sem-capa-conheca-a-rede-de-protecao-infantojuvenil-de-sorocaba/ )
Programa de guarda subsidiada, o “Entre-Laços” viabiliza financeiramente o acolhimento das crianças e adolescentes, de modo a que seus cuidadores possam garantir-lhes dignidade. De acordo com o secretário da Cidadania, Paulo Henrique Soranz, o programa é a melhor alternativa para manter a criança em contato com a família, que é seu espaço de identificação e pertencimento. “Com a guarda subsidiada, usamos dessa família estendida para reinserir a criança, oferecendo a ela a oportunidade de retomar sua convivência com o grupo familiar, de forma a que se reconheça participante de um contexto social de proteção e cuidados. Não obstante a qualidade do trabalho prestado pelas instituições, a família será sempre o melhor lugar pra a criança estar”, comentou, referindo-se ao fato de que o investimento realizado na família acolhedora é muito melhor do que custear uma vaga em casas-abrigo.
O subsídio para a família integrante do “Entre-Laços” é de um salário-mínimo custeado pelo Fundo Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (FUMCAD). Sorocaba tem, hoje, 123 acolhimentos feitos, com avaliações de cerca de 12 casos para desinstitucionalização e retorno à família.
As primeiras
As irmãs Docinho, Florzinha e Lindinha (ótimos pseudônimos para quem tem vivido heroicamente) têm 11, 8 e 6 anos e já não mais dormem em camas emprestadas, dividem banheiro com crianças que não conhecem ou se sentam à mesa sem conhecer as histórias de suas companhias.
Elas são as primeiras a sair de uma instituição de acolhimento para viver em família, com a avó e duas jovens tias. A mãe de 29 anos, filha mais velha de Ivone, mora em Sorocaba, mas sem qualquer contato com as meninas. Respondendo na Justiça por negligencia, ela preferiu ficar com seu companheiro acusado de abuso contra Docinho. “Ela está autorizada a vir vê-las, na minha presença, mas não quer. É uma opção dela. E eu não julgo. Quem vai julgar o que ela fez é a Justiça; é Deus”, comentou a mulher crédula e agradecida por, agora, conhecer o que acontece com suas netas, desde o momento em que acordam, até quando vão dormir.
Essa mulher de olhar profundo e carinhoso, de fala tranquila e firme muito se culpou por achar que não tinha agido como devia para salvaguardar as pequenas. Sentindo-se redimida, em muito por conta do entendimento do ocorrido a partir dos cuidados oferecidos pela rede de atenção à criança e adolescente da cidade, onde teve o devido apoio psicológico, fala mansamente sobre o ocorrido.
Sempre que visitava as netas, Ivone estranhava a condição do ambiente. Era sujo, bagunçado e as meninas se mostravam sempre abatidas. Desconfiava que algo não estava certo e queria levar a mais velha para ficar com ela. Perguntava à filha o que acontecia, mas nunca obtinha resposta convincente. E, acreditando que por ter a maior idade na casa Docinho seria uma espécie salvaguarda para as irmãs menores, preferiu não mexer na situação.
Foi aí que a menina agiu. Não junto à avó, mas foi com uma coleguinha da escola que Docinho comentou que era assedia e bulinada pelo namorado da mãe. Estabeleceu-se, então, uma corrente: a amiguinha contou à mãe, que levou o assunto à direção da escola, que acionou o Conselho Tutelar. Em poucos dias, Docinho, Florzinha e Lindinha eram retiradas do lar materno e entregues para Ivone.
“O chão se abriu”
A sensação de impotência, medo e revolta abriu um buraco na vida dessa avó que se achava responsável pelo ocorrido, por não ter agido como deveria. “Hoje eu consigo ver que minha filha é quem deveria ter protegido as meninas”, diz contando que chegou a ouvir da filha que a mais velha era “a culpada, pois era a provocadora”.
Abatida pela tristeza dos fatos e morando em uma casa simples e pequena, Ivone ainda tomaria outra decisão dolorosa. Aposentada por invalidez e sem condições de oferecer um lar adequado às netas, ela fez o caminho de volta à rede de proteção e decidiu deixar as meninas sob a tutela do Estado. “Ao menos viveriam cuidadas adequadamente; o que eu não conseguiria naquele momento”.
Foi assim que o “Entre-Laços” entrou na vida dessa família. Ivone foi enlaçada por um sistema composto pelo Centro de Referência Especializada em Assistência Social (CREAS), vinculado à Secretaria da Cidadania; pelo Conselho Municipal da Criança e Adolescente (CMDCA), ao qual está atrelado o Conselho Tutelar, e pelo Juizado da Infância e Adolescência. Juntos esses organismos formam o Serviço de e Acolhimento Institucional para Crianças e Adolescentes (Saica), onde começou a ser construída uma nova e melhor oportunidade de vida para as três meninas.
E a esperança renasceu em Ivone. Para quem criou sozinha quatro filhas, continuar criando as netas, desde que em dignas condições, seria uma tarefa que bem conhecia. Transcorrido algum tempo, o trio se tornou o primeiro grupo beneficiado pelo programa. Foram alguns poucos meses, até que elas pudessem adentrar, desta vez, um lar pintado nas cores da paz, do amor e da proteção.
‘Sei que vou conseguir’
Da varanda que se transformou em área de refeição, avó e netas conseguem não somente vislumbrar parte da cidade que as acolheu, mas também mirar um futuro mais feliz. A se contar pelas risadas das meninas, retribuídas no sorriso aberto de Ivone, essa história caminha por caminhos de respeito, admiração e gratidão.
A jovem avó assume que tem aprendido muito com as pequenas e com o acontecido. Apesar de já ter praticado o diálogo e o afeto com suas filhas, agora ela repete a cartilha, mas instituindo novos acordos de convivência. “Todos os dias sentamos aqui para discutir o que fizemos, para falar de nosso dia. Elas podem falar do que gostam ou não em mim e digo que sempre me esforçarei para melhorar no que for possível”, contou alertando que as regras incluem hora de brincar, de estudar e de descansar. E que também as meninas entendem que devem buscar melhorar seu comportamento para que haja harmonia na casa. “A união é a coisa mais importante dentro de uma família”, disse.
Cozinheira de mão cheia, Ivone faz a festa com as meninas quando resolve abusar no fogão. E isso traz furor à Docinho, Florzinha e Lindinha que nem titubeiam ao responder sobre o que mais gostam na vó: a comida. Mas e o amor, e o cuidado? “Ah também, né. Mas a vó faz coisa muito gostosa”, reitera a mais velha elencando os cardápios compostos por delícias caseiras, lanchinhos, bolos e pães feitos em casa. Inevitável não pensar no primeiro Natal e primeiro Ano Novo juntas. “Teve tanta coisa gostosa e muito presente”, lembra a do meio. Mas foi a menorzinha quem muito dançou e celebrou a data, puxando as irmãs, as tias e uma amiguinha para a festa. “Quer ver?” e ela mostra o vídeo gravado pelo celular, com os olhos cheios de uma inocente alegria.
Ivone é só agradecimentos. Diz que, agora, está em paz e conta que ao acordar todos os dias sabe que vai conseguir cumprir sua missão de criar as netas. “Houve momentos em que me vi numa existência de espinhos; na escuridão. Mas, com o programa abriu-se pra porta de esperança”, contou a mulher que, antes de começar a receber o valor que permite dar dignidade às netas, fez empréstimo para garantir a caução no imóvel alugado e ajudar a começar a escrever uma nova história para elas.
Uma história de três pequenas heroínas que contou com a participação de muitos outros personagens. Atores de um luta pela garantia dos direitos das crianças, dispostos a doar seu tempo, seu trabalho, seu suor e sua paixão e que ficou evidenciada não apenas no dia a dia da burocracia e tecnicidade do processo de benefício do “Entre-Laços”, ou do cuidado na casa-abrigo. Essa paixão também marcou o momento da decisão da justiça sobre a transferência da guarda definitiva das meninas para Ivone. No fórum, ao sair da sala do júri, ela se deparou com o grupo a sua espera. “Depois de tudo, sair da sala e ver todo mundo que havia caminhado ao nosso lado, nos amparando e apoiando, felizes por nossa vitória, me fez acreditar que sempre será possível ajudar e cuidar daqueles que, sozinhos, não podem se defender. Não há recompensa maior do que saber que somos amados”, resumiu.