Fernanda Mena e Júlia Zaremba, FOLHAPRESS
"Ele é incapaz de fazer mal a uma mosca." Era assim que a garçonete Danielly Teles Baffa, 25, respondia aos tios, primos, amigos e colegas que se mostravam preocupados com seu relacionamento com o pizzaiolo Dagner Ribas dos Santos Silva, 33.
Na noite da última quinta-feira (21), a jovem tomava sorvete com um amigo numa praça de Araraquara (a cerca de 275 km da de São Paulo) quando Dagner chegou de moto e a matou a golpes de faca.
Danielly é uma das quatro mulheres vítimas de feminicídio no estado de São Paulo em quatro dias, de quarta-feira (20) a sábado (23), às vésperas do Dia Internacional para a Eliminação da Violência Contra as Mulheres, celebrado nesta segunda (25). Tamanha concentração supera a média de feminicídios de 2018, quando uma mulher foi vítima desse tipo de assassinato a cada dois dias e meio.
De fato, tudo indica que 2019 terá concentração ainda maior de feminicídios, já que foram registrados 121 casos em São Paulo de janeiro a setembro deste ano, de acordo com dados da Secretaria da Segurança Pública do estado –crescimento de 27,3% em relação ao mesmo período de 2018, quando foram registrados 95 casos.
O interior concentra mais da metade dos casos registrados neste ano: 63. No ano passado, foram 52 no mesmo intervalo.
"A gente falava para ela ter cuidado com ele, pois havíamos ouvido histórias de que ele enganava a primeira mulher e batia na segunda", conta a esteticista Luciane Nunes, 41, tia e madrinha de Danielly, com quem a vítima morou quando retornou de uma temporada de quatro anos na Itália, onde sua mãe vive com seus dois irmãos mais novos.
"Ele sempre se fazia de vítima para ela: falava que ia se matar, que era sozinho. E ela ferrou com a vida para ajudá-lo", lamenta ela, que descobriu que Danielly já havia sido agredida algumas vezes por Dagner –agora em prisão temporária. "O que faz uma mulher que é agredida continuar num relacionamento desses? Eu não entendo."
"A gente nunca achou que a coisa fosse chegar num feminicídio, mas sabíamos que se tratava de uma relação abusiva", completa o tio de Danielly, o advogado Cezar Nunes.
Danielly não havia denunciado o homem antes, como fizeram 96% das vítimas de feminicídio tentado ou consumado, entre as 364 denúncias feitas entre 2016 e 2017 analisadas pelo Ministério Público de São Paulo.
O mesmo estudo mostra que a maioria absoluta dos autores dessas mortes são maridos ou ex-maridos, companheiros ou ex-companheiros, namorados ou ex-namorados.
"Se a maior parte das mulheres vítimas de feminicídio não chega a ir à delegacia, a nossa estratégia está falhando, porque, quando pensamos em violência contra a mulher, pensamos em medida protetiva e em Lei Maria da Penha, que só funcionam a partir da denúncia", afirma Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum.
"Todas as modalidades de violência contra a mulher estão crescendo no Estado", afirma ela. "Além do feminicídio, cresceram os registros de estupros, de homicídios comuns e de latrocínios com vítimas mulheres."
Um dia antes do assassinato de Danielly, a mais de 100 km dali, na cidade de Agudos, Silvana Augusto Jesus, 31, foi morta a facadas por Luis Fernando Maroni Goehring, 38, e enterrada no quintal da casa em que viviam. O agressor foi encontrado com manchas de sangue pelo corpo e acabou preso em flagrante.
A manicure Alessandra Cristina Robledo Florino, 40, também foi atacada a facadas, em Pirajuí. O marido, o trabalhador rural Alex Aparecido Cardoso, 36, chegou alcoolizado de um churrasco e a matou após uma discussão.
O filho da mulher, de 13 anos, testemunhou o crime e acionou o socorro. Ela deixa também um bebê de 6 meses, fruto do relacionamento com o agressor.
Alex teria tentado cometer suicídio após o crime, segundo o delegado César Ricardo Nascimento, que conduz as investigações.
A faca, de 20 cm, foi apreendida pela polícia. Testemunhas serão ouvidas, e os laudos, analisados.
Na noite do mesmo dia, a cabeleireira Mariana de Fátima Mafei, 30, foi morta a tiros por Adenilson Soares do Prado, 36, que se matou após o crime.
A irmã de Mariana, Marcia Mafei, 43, conta que a vítima conheceu Adenilson quando tinha 13 anos. Há cerca de seis meses, separada do ex-marido, ela decidiu dar uma chance para o homem. "Ele era de família boa, trabalhador, cultivava terra. Começou a mandar flores para a Mariana e disse que ela sempre foi o amor da vida dele", conta.
Um mês depois, contudo, começou a perceber que o companheiro era excessivamente grudento e ciumento.
Segundo Marcia, ele criava perfis falsos de homens em redes sociais para testá-la, costumava fazer ligações de vídeo para checar onde estava e surgia no trabalho dela à noite sem avisar. "Ele a sufocava", diz a irmã.
Tentaram outras vezes manter um relacionamento. "Mas ela nunca aguentava mais do que um mês", diz Marcia. Certa vez, ele ameaçou se suicidar caso ela o deixasse.
Agressões físicas nunca ocorreram, segundo ela. Mas Mariana se preocupava com a arma que o homem guardava em casa. Ele alegava que o objetivo era proteger a sua propriedade de roubos.
O último término foi na sexta-feira (22), após o celular de Mariana descarregar e ele entrar em pânico. "Ela disse que não queria mais mesmo, que ele parecia psicopata e que a história poderia acabar mal", conta Marcia. "Disse para cada um seguir o seu caminho."
Adenilson foi até a casa da mulher por volta das 20h50, na zona norte da cidade, sem avisar. A mãe e o tio de Mariana estavam na casa –a filha de 7 anos havia saído quinze minutos antes para ficar com o pai.
Ela se recusou a falar com o homem. E ele disparou a arma. Segundo Marcia, a vítima levou cinco tiros, três nas costas. "Estamos desolados. Era era a luz da nossa casa. A filha está muito abalada, chorando", diz Marcia.
Segundo ela, cerca de 700 pessoas foram ao enterro. A família de cabeleireiros é conhecida na cidade. "Acho que foi um dos maiores velórios que a cidade já viu."
Dados do Atlas da Violência 2019 apontam que a morte violenta intencional de mulheres no ambiente doméstico cresceu 17% em cinco anos. De acordo com dados de estudo no Ministério Público de São Paulo, 66% dos feminicídios tentados ou consumados ocorreram na casa das vítimas; 58% deles foram perpetrados com armas brancas, enquanto 17% ocorreram com o uso de armas de fogo.
Segundo Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, "campanhas de conscientização podem ajudar a mulher a reconhecer que está sendo vítima de violência e podem empoderar as vítimas a fazer denunciar as agressões" que geralmente antecedem o feminicídio. Mas o fato de o agressor ser alguém com quem a mulher tem um vínculo afetivo complica o quadro.
Samira explica que muitas vezes o feminicídio ocorre no momento em que a mulher rompe com o agressor. "Esse é o grande dilema: queremos que a mulher em situação de violência se empodere para sair da relação abusiva, mas o rompimento da relação muitas vezes funciona como gatilho para o feminicídio", diz. "Como proteger essa mulher é a questão."